Sussurros Neuroticos na Estetica de Khouri

Aos poucos Khouri vai criando, em As Deusas, um processo espiritual de filmar dificilmente atingido, em sua complexidade, nos seus outros trabalhos

09/10/2021 02:25 Por Eron Duarte Fagundes
Sussurros Neuroticos na Estetica de Khouri

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É certamente o mais complexo dos filmes de Walter Hugo Khouri: da composição cinematográfica à estrutura interna das personagens. As deusas (1972), por uma destas raras felicidades estéticas, é uma narrativa-atmosfera como poucas vezes se teve a oportunidade de assistir no cinema: densa e nebulosa, a espiritualidade carnal em grau superior. Pode-se dizer que Khouri sempre buscou isto em seus filmes, os procedimentos formais sempre foram estes que se exacerbam em As deusas, só que aqui eles pingam no ponto exato, criando o que se pode chamar um arrepio do estilo de filmar, uma eletricidade fílmica única. A palavra que usei na primeira frase, “complexo”, não é aqui um jogo ou efeito crítico, nasce da sensação que emana das multiformes emoções do contato com o filme de Khouri. Em As deusas, como estamos longe das coisas epidérmicas que os mesmos procedimentos formais trazem para o celuloide em O palácio dos anos (1970) e O prisioneiro do sexo (1979). As deusas é mais esquivo, difícil e profundo; o sexo voraz entre as duas mulheres e o homem nas sequências finais adquirem uma outra estatura, uma beleza que transcende toda a aparência e mesmo os meios materiais de que dispõe o cinema.

Estes meios de que se vale Khouri são asfixiantemente contidos. Há somente três personagens em cena: Ângela, uma mulher com problemas neuróticos, sua psiquiatra Ana, ambas vividas por atrizes características do universo de Khouri, nos papéis a fêmea-mistério de Lilian Lemmertz como a paciente e a devoradora às ocultas Kate Hansen no papel da médica, e Paulo, companheiro de Ângela e que depois se enovela no fim nos corpos das duas mulheres, a neurótica e a terapeuta, confundindo-se uma na outra. E o cenário é concentrado: uma propriedade isolada no campo, onde a tergiversação íntima das três criaturas, especialmente das mulheres, se expõe para a câmara em palavras, gestuais, olhares, provocações físicas de maneira evasiva e no entanto de grande expressividade visual. Em vários momentos, mas fundamentalmente na sequência dos planos de abertura e depois na sequência de planos que fecham o filme, Khouri executa depurados e precisos movimentos de câmara sobre os cenários e os atores que se intercalam nos planos da montagem. Aos poucos Khouri vai criando, em As deusas, um processo espiritual de filmar dificilmente atingido, em sua complexidade, nos seus outros trabalhos. Um cinema do espírito, certamente, como no sueco Ingmar Bergman e no francês Robert Bresson. Para ajudar a caracterizar estas intenções, a espaços Khouri insere uma palavra latina, “anima”, que é de onde veio o vocábulo português “alma”: a alma pode ser vista no lado material de As deusas. “Anima” é murmurada pelos atores e também pode ser lida, a palavra, numa das paredes externas da casa. Esta insistência sobre o fantasma metafísico, a alma, topa um correspondente perfeito no fenômeno estético, o modo como o filme, em sua plena felicidade formal, se materializa.

As deusas talvez se situe no cume dum cinema cujas intenções interiorizadas podem ser detectadas, de Estranho encontro (1958) a As feras (2001), buscando muitas vezes soluções de complicadas realizações mas sempre de integridade apaixonante. Filme do espírito, como se deve reiterar, As deusas tem às vezes uma atmosfera de pesadelo inconstante que o aproxima de outros exemplares do cinema de Khouri, O anjo da noite (1974), As filhas do fogo (1978) e Amor voraz (1984), sem prejuízo de se considerar que em As deusas este lado de sua confecção se insere na profundidade interior de seu universo de sussurros neuróticos assustadores.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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