A Farra Sexual em Khouri: Carne Voraz
Em O convite ao Prazer (1980) o cineasta Walter Hugo Khouri reposiciona seu cinema para a ampla liberdade de filmar o sexo das personagens
Logo que terminam os créditos iniciais, uma epígrafe: “A liberdade é o reconhecimento da necessidade.” A frase é do filósofo Spinoza. Em O convite ao prazer (1980) o cineasta Walter Hugo Khouri reposiciona seu cinema para a ampla liberdade de filmar o sexo das personagens, expondo seus atores de maneira ousada, com absoluto despudor; talvez seja neste filme que o sexo jorrou mais abundantemente entre os filmes de Khouri, sempre inquietos com a relação entre o existencialismo burguês e o sexo como desrecalque das amarras desta classe social; no filme seguinte de Khouri, Eros, o deus do amor (1981), a citação de epígrafe busca no romancista americano Norman Mailer o mote de que o sexo começa verdadeiramente a filosofia. O convite ao prazer, bem na quadra em que a censura abria as pernas e a pornografia estava na praça, se valeu disto para impor sua linguagem própria; embora o espectador habitual possa ver as ginásticas sexuais da mesma maneira que vê as pornochanchadas da época (certos rostos dos filmes menores pornográficos são usados aqui por Khouri: Helena Ramos, Aldine Muller, Nicole Puzzi), um olhar mais detido observa o rigor da construção formal do cineasta, desde uma refinada composição de cenários até uma encenação que, apesar de deparar com a vulgaridade, está cheia de sensibilidade, inteligência e algum brilho.
Há um instante, no apartamento de orgias a que o milionário Marcelo (Roberto Maya) leva seu amigo de infância e juventude, o dentista Luciano (Serafim Gonzalez), e um plantel de atraentes e diversificadas mulheres, em que a obsessiva filmagem de planos de contatos sexuais vorazes ou devoradores, este instante, no acúmulo exasperante dos planos, adquire uma abstração: torna-se numa forma cinematográfica; a matéria esvai-se no formalismo de Khouri, brilhante, agudo e aqui neste filme superficial relativamente a obras como O corpo ardente (1966) ou As deusas (1971). Pode-se ver inicialmente como um tedioso e pornográfico rosário sexual estas cenas que se acumulam na narrativa de maneira quase resfolegante. Mas é estilização pura: com o refinamento essencialmente cinematográfico de Khouri. Há outro instante em que Khouri põe Kate Lyra (uma das personas do mundinho brasileiro de então) a dançar, em cima duma mesa, diante duma encarnação de macho tragicômico composto por Serafim Gonzalez: Khouri faz, por aí, uma atmosfera musical muito particular em O convite ao prazer.
Opondo duas classes que se encontram (ou reencontram), o milionário Marcelo e um indivíduo de classe média em ascensão, o dentista Luciano, Khouri desenha bem os conflitos. Especialmente caracterizado nas personas que as atrizes constroem para as duas esposas: Helena Ramos compõe uma explosiva suburbana, Anita, a mulher do dentista, e Sandra Bréa faz Ana, a asséptica e melancólica figura que é a esposa do riquíssimo e devasso Marcelo. As possíveis fossas do casal suburbano não se se confundem com o tédio do casamento dos milionários, onde a inventividade de situações sexuais surge para tentar driblar a rotina asfixiante: este tédio de rotinas muito já vistas está bem posto também na figura da matriarca, a mãe de Marcelo, que, ao receber a nora, antecipa com cinismo os problemas conjugais que a visitante lhe dará a ver.
No fundo, como aduz já na frase de Spinoza, as personagens de O convite ao prazer estão nestes limites, ou tentando rompê-los, entre a liberdade e a necessidade.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br