Pauliceia Numa Visao Sulina
Pauliceia desvairada eh uma ponte entre o antigo e o moderno na literatura brasileira
Pauliceia desvairada (1921) é o canto introdutório de Mário de Andrade. É um dos suspiros ou arrufos do modernismo brasileiro que, observado hoje, tem um pouco de histórico e um pouco de moda. Um movimento literário que se tornou ele mesmo uma personagem da literatura: sobrepaira sobre as outras personagens. No “Prefácio interessantíssimo”, que é parte orgânica do poema, Mário larga de cara o grito inovador: “Leitor: está fundado o desvairismo.” Ao longo desta peça introdutória, o poeta funda sua profissão de fé estética: “Daí a razão desse prefácio interessantíssimo.” Mas seria Mário, naquela década de 20 de cem anos atrás, suficientemente moderno para abalançar-se à empreitada? Autêntico ou irônico, o próprio Mário lança sombras sobre isto: “E desculpe-me por estar tão atrasado dos movimentos artísticos atuais. Sou passadista, confesso. Ninguém pode se libertar duma só vez das teorias-avós que bebeu; e o autor deste livro seria hipócrita se pretendesse representar orientação moderna que ainda não compreende bem.” Estaria Mário lançando-se no escuro?
O grito inicial do poema é paulistano (o título já era!): “São Paulo, comoção da minha vida...” Há murmúrios nestas reticências poemáticas. O poema final, “As enfibraturas do Ipiranga”, é construído de símbolos; estes símbolos são inicialmente dispostos (antes de entrarem nos versos) como criaturas-conjunto apresentados ao modo de personagens dum texto escrito para teatro. “Os orientalismos convencionais” são “escritores e demais artifícios elogiáveis”. “As senectudes tremulinas” são “milionários e burgueses”. “Os sandafilários indiferentes” são “operariado, gente pobre”. “As juvenilidades auriverdes” somos “nós” (quem, nós? os modernistas). “Minha loucura” aparece como “soprano ligeiro, solista”. No fim “(Juvenilidades auriverdes e Minha loucura adormecem eternamente surdas, enquanto das janelas dos palácios, teatros, tipografias, hotéis —escancaradas, mas cegas — cresce uma enorme vaia de assobios, zurros, patadas.)” Alfredo Bosi, em História concisa da literatura brasileira (1970), associa a técnica poética de Mário à escrita automática do surrealismo e o dá como precursor de revolucionários como Guimarães Rosa. Bosi alude ao “princípio de colagem”. Passados tantos, uma leitura (ou releitura) de Pauliceia desvairada expõe muito mais as heranças parnasianas de Mário (como libertar-se das “teorias-avós”?) que alguma inquietação moderna de natureza estética. Os estereótipos de “As enifibraturas do Ipiranga”, dispostos à maneira de teatro, trazem algo de artificioso, a despeito da sensível inteligência de Mário (aí, vemos o ensaísta). Pauliceia desvairada é uma ponte entre o antigo e o moderno na literatura brasileira, certo: mas esta ponte hoje precisaria de pinturas novas.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br