O Controle nas Relações de Poder
Foucault é implacável em sua visão do instituto da prisão na França ao longo dos séculos
Há momentos em Vigiar e punir; nascimento da prisão (Surveiller et punir; naissance de la prison; 1975), um dos ensaios básicos do francês Michel Foucault, em que a carruagem de teorias habilmente montada parece uma adaptação do romance 1984 (1949), do inglês George Orwell. Estes momentos chegam a seu cume quando o autor francês descreve o panoptismo, o mecanismo instalado no instante mesmo em que a vigilância prescinde da existência do sujeito que vigia, o controle já está dentro do vigiado, ele não sairá mais da linha. Quer dizer: “Faire que la surveillance soit permanente dans ses effets, même si elle descontinue dans son action.” (“Fazer com que a vigilância seja permanente em seus efeitos, mesmo que seja descontínua em sua ação.”).
Foucault é implacável em sua visão do instituto da prisão na França ao longo dos séculos. No começo de seu livro Foucault narra, impecável e cruamente, os sofrimentos impostos pelo Estado ao parricida Damiens, executado em dois de março de 1757. “Mon Dieu, ayez pitié de moi” (“Meu Deus, tende piedade de mim”) geme o criminoso supliciado, “Jésus, secourez-moi” (“Jesus, socorrei-me”) vai adiante a fala dele; é tudo o que resta ao facínora agora desmontado membro por membro pela crueldade que a humanidade lhe devolve. “Voilà donc un supplice et un emploi du temps” (“Eis então um suplício e um emprego do tempo”), anota, ao cabo de sua primeira crônica de sangue (as torturas com Damiens), Foucault, crítico e perverso a um tempo.
Foucault mostra, historicamente, como a punição física, no começo do século XIX, foge ao suplício corporal mas para deter-se na prisão do corpo; já não se visa à anatomia mas ao impedimento dos movimentos livres. No entanto, observa o filósofo, há ainda resquícios do suplício físico, que se reduz mas não desaparece. No fundo, como o suplício não some por inteiro, sempre podemos voltar a deparar com ele em algum curso da História. Quem propicia a multiplicação destas casas de loucos que vêm a ser os cárceres? É o próprio povo que, diz Foucault, se regozija com isso. O que ocorre? Marx e Freud se unem aí: o masoquismo político nos alimenta.
Foucault monta seu quebra-cabeças antropológico para dizer-nos que a prisão é um instituto ultrapassado, falido. Diz ele: “Il faut s’etonner que depuis 150 ans la proclamation de l’échec de la prison se soit accompagnée de son maintien” (“É de espantar que passados 150 anos a proclamação do fracasso da prisão esteja acompanhada de sua manutenção”). Mas ele próprio desfaz o espanto, explicando as razões. “Peut-être faut-il aussi renoncer à toute une tradition qui laisse imaginer qu’il ne peut y avoir que là où sont suspendues les relations de pouvoir et que le savoir ne peut se développer que hors de ses injoctions, de ses exigences et de ses interêts.” (“Talvez seja preciso também renunciar a toda uma tradição que deixa imaginar que não possa haver saber onde são suspendidas as relações de poder e que o saber não pode desenvolver-se senão fora de suas injunções, das suas exigências e de seus interesses.”).
O “savoir-pouvoir” (saber-poder) é o nervo central de Vigiar e punir, definido a certa altura como uma “genealogia da moral moderna que parte duma história política do corpo”. “Peut-on faire?” (“Pode-se fazer?”) questiona o autor. Ele o prova, em pouco mais de trezentas páginas, que é possível.
Michel Foucault nasceu em Poitiers em 15.10.1926. Morreu em Paris em 25.06.1984, aos 57 anos de idade. Ele faleceu em virtude de problemas neurológicos agravados pela AIDS. Foucault era homossexual e tinha um companheiro. Há uma anedota divulgada há alguns anos pelo escritor francês Alain Robbe-Grillet: quando esteve no Rio, em 1973, Foucault, num elevador, se teria envolvido num assédio feroz a um ascensorista. Seria Foucault um homossexual libertino? Muito de sua paixão pelo estudo moral às avessas tendo por espectro o corpo do homem pode ter partido desta sua característica. Algo pasoliniano, algo neurológico, mas algo transcendente e perturbador.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br