Shakespeare Comico: Sofisticado e Engracado
A Comedia dos Erros, tem seu lugar unico, insubstituivel e imutavel dentro do universo de Shakespeare
No princípio, as comédias do inglês William Shakespeare não têm o mesmo prestígio de seus dramas, onde impera uma sisuda metafísica. A comédia dos erros (The comedy of errors; 1594) é uma destas peças obscuras de Shakespeare em que o comediógrafo parte duma estrutura de entretenimento do espectador para construir seu notável arcabouço dramatúrgico de sempre. Shakespeare é o grande mestre dos espaços cênicos ocidentais pelo menos desde o Renascimento; este senso teatral do escritor já se percebe desde a leitura, antes de ver seu texto em ação num palco; todas as coisas, todos os ditos, todos os cálculos de situação após situação, em A comédia dos erros, têm seu lugar único, insubstituível e imutável dentro do universo de Shakespeare.
O ponto de partida de A comédia dos erros é a confusão que se estabelece a partir da presença cênica de dois pares de gêmeos. Antífolo de Éfeso e Antífolo de Siracusa são gêmeos que não se conhecem: extraviados um do outro desde a infância. Cada um tem um criado, Drômio de Éfeso e Drômio de Siracusa, ambos também gêmeos entre si que não se conhecem, extraviados desde antanho. Suas entradas em cena encontram definição nas chamadas e nas falas, mas num palco Shakespeare joga com esta perplexidade e indefinição visuais. E joga no caos de identificação tanto o observador teatral quanto as outras personagens, a esposa e a cunhada de um, uma cortesã, outros seres, e os próprios, Antífolos e Drômios.
Realce para a bela tradução, clássica, rigorosa, impiedosa mas jamais fechada, de Carlos Alberto Nunes.
“Não, é pior do que isso: é a avó do diabo, que nos aparece sob a forma de uma meretriz leve; daí o costume de dizerem as meretrizes: ‘Deus me dane!’, que é como se dissessem ‘Deus faça de mim uma donzela leviana!’ Está escrito que para elas aparecem aos homens como anjos de luz. Ora, a luz é uma consequência do fogo, e o fogo queima. Logo as donzelas queimam. Não vos aproximeis dela.”
Tenhamos, pois, cuidado com os gêmeos. Há perigos nestas aparências. São mais perigosos, ainda, quando são servos, como nas falas que fecham a peça. Quem entra primeiro na abadia? Quem nasceu primeiro? Questão crucial que os gêmeos não resolvem: estão de mãos dadas, ali penetram ao mesmo tempo. Solução ou início de problemas? O resto vai pelo silêncio do verbo de Shakespeare após o ponto final.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br