A Linguagem Rara
O Diario de Myrna K. (2023) se trata de um achado contemporaneo de nossa literatura que surpreende por seu rigor de linguagem no seio de nossas trivialidades
Muriel Maia-Flickinger nasceu em Guaporé, no Rio Grande do Sul: é a mesma cidade-berço de outra bela escritora gaúcha, a poetisa Maria Carpi. O diário de Myrna K. (2023) é um achado contemporâneo de nossa literatura que surpreende por seu rigor de linguagem no seio de nossas trivialidades. Usa em sua narrativa certas construções de mistério, meio subterrâneas, evocando certas coisas de Lúcio Cardoso, mas sem o sombrio deste romancista, dando ao leitor um universo literário bastante único e fascinante.
Quem nos introduz na história é a personagem de Ismália Porto, que, com uma nota definida como “observação inicial”, assim se apresenta: “Levou-me a publicar o texto ou os textos que apresento, a sua mera existência e estranheza. Anos atrás, arrematando em leilão a casa em que hoje moro, deixei primeiro reformá-la e, durante os trabalhos, encontrou-se no sótão um pequeno alçapão. Dentro dele um Diário e um punhado de textos isolados, que, após ler e hesitar entre destruir e publicar, hoje entrego ao leitor. Myrna K., proprietária anterior de casa, deixou-a em testamento ao casal de empregados que a servia.” Existência e estranheza. O que existe é estranho. A estranheza está no existente. Por que existe isto? A pergunta já determina a estranheza. O cotidiano como esquisitice. De que falam os Diários de Myrna? Começam assim, sob o outono de 1996: “Foi hoje, ao voltar da cidade, que decidi escrever estas lembranças. Eu a enxerguei quando subi a Borges. Parada sob os arcos imundos e deteriorados do Viaduto, tinha na mão um maço de marcelas e falava com alguém; acho que a vendedora. Foi sua voz, na verdade, quem me fez relembrar não dela, propriamente, mas do espaço e do tempo em que tudo se deu. Vizinhas do andar em um velho edifício, na Cidade Baixa, conhecidas apenas, sem substrato qualquer que nos ligasse, sem história a narrar, porém, vê-la, ou melhor dito, ouvi-la, e o passado saltou da lembrança.”
A tensão poética da memória ficcionada nos Diários duma personagem domina o livro de ponta a ponta. O alto brilho literário da escritora pode ser topado em vários instantes, recriando atmosferas, digamos assim, pós-pós-proustianas, pois os delírios pós-clássicos de Marcel Proust não caberiam nas aventuras do século XXI.
Os tesouros são assim, na cabeça de Myrna:
“Foi, na verdade, o sótão que me levou à compra desta casa. Apaixonei-me por ele de imediato. Mesmo sabendo que teria de refrigerá-lo o tempo todo, no verão, foi nele que instalei meu quarto. Minha mudança aconteceu no inverno, e o sótão deu-me o que precisava então: a sensação do novo e inusitado. Eu estava no estágio em que os bichos se escondem a lamber suas feridas. Na primeira manhã, ainda escuro lá fora, ao saltar do colchão eu bati com o nariz na janela. Prisioneiro do hábito, o corpo é o último a aceitar a novidade. No velho apartamento, o banheiro ficava à direita; aqui, à esquerda. Terá sido este o meu primeiro movimento a caminho da amnésia? Ao abrir a vidraça, deparei com a geada, abaixo, nas telhas do alpendre. Raspei-as com os dedos, e seu verde brilhante feriu-me a pupila. Após meses de cinza eu percebi as cores. ‘O mundo é colorido’, eu me ouvi murmurar.”
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br