A Essncia Latino-Americana nos Cem Anos

A Essncia Latino-Americana nos Cem Anos

13/05/2014 16:48 Por Eron Fagundes
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O colombiano Gabriel García Márquez se transformou num escritor essencial. O tempo e suas essências latino-americanas remotas se derramam desde o início nas páginas de Cem anos de solidão (Cien años de soledad; 1967). A essência de García Márquez é transcendental, é claro, nela se deposita tudo o que interessa em termos de América Latina, o essencial, o frigir dos ovos; também se pode dizer que tudo o que está ali, escolasticamente, só se pode transcrever em palavras, ao largo do mundo concreto, o concreto ali não é possível, tudo é pensamento verbal, a essência de Márquez, seu verbo latino-americano; e há uma outra essência, como o perfume das plantas, uma essência (um cheiro) que emana da latino-americanidade. “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo.” Marcel Proust, outro autor do tempo que se perde no espaço (o espaço das memórias que se superpõem), começava seu romance-rio por um idêntico destilar-se nos anos: “Por muito tempo eu me deitei cedo.” Tempos depois em outro romance, García Márquez escreveria: “No dia em que o matariam, Santiago Nasar levantou-se às 5h30m da manhã para esperar o navio em que chegava o bispo.” Eis aí o jogo brilhante com o tempo mental do leitor, evocado por certas expressões de vaivém. Chegou-se a dizer que o romancista colombiano teria dito que se inspirara em O tempo e o vento (1949) para achar a forma final de Cem anos de solidão. Sim: há certas estruturas arcaicas ou familiares idênticas nas duas sagas. Mas não se logra imaginar a estrutura libertária de Cem anos de solidão ao lado da narrativa clássica e com aroma de realismo novecentista tardia que vem da pena de Erico. Ao menos deve-se dizer, por honestidade estética, que García Márquez, ao ler Erico, sacudiu os poros narrativos e o resultado é muito diverso.

O século XX, em sua versão duma perdida (e imaginária) vila da América Latina, talvez seja a criatura central de Cem anos de solidão. “Deslumbrado com tantas e tão maravilhosas invenções, o povo de Macondo não sabia por onde começar a se espantar.” O espanto mesmo é a atualidade de um livro como o de García Márquez, que mergulha no arcaico para extrair o para além do moderno. O narrador de Márquez anota o feitiço encantatório das primeiras lâmpadas elétricas em Macondo. Se este narrador nos visitasse hoje, se voltaria para o celular, a internet e outras maravilhas incompreensíveis. Nada mais fantástica do que a realidade que se acavalou no século XX. Em seu discurso do Prêmio Nobel, Márquez referiu uma velha leitura, o italiano Antonio Pigafetta, o cronista que acompanhou o navegador Magalhães na volta ao mundo. “Uma crônica rigorosa, que, no entanto, parece uma aventura da imaginação”, aduz ironicamente Márquez. A realidade, parece advertir o escritor, é sempre espantada pela imaginação. Como o centauro no jardim do ficcionista brasileiro Moacyr Scliar. Ou os porcos com o umbigo no lombo descritos por Pigafetta. A verdade é que García Márquez deu uma forma grandiosa nunca devidamente cotejada, em Cem anos de solidão, a este real delirante em que, na verdade e cada vez mais, vive o mundo. Somos o real implantado na imaginação.

Por sobre seus méritos literários gigantescos, García Márquez teve relações agudas com o jornalismo e o cinema. Talvez a confluência mais notável destas relações se tenha dado no livro A aventura de Miguel Littín clandestino no Chile (1985). Em 1985 o cineasta chileno Miguel Littín esteve, disfarçado e por seis semanas, no Chile para filmar o país após doze anos de ditadura militar; com risco de vida em cada um de seus passos, Littín, proibido de pisar em sua terra natal pelos militares que subiram ao poder em 1973, rodou Acta general de Chile (1986), que se pôde ver no Brasil em novembro de 1986, no Rio, num Festival de Cinema, em sessão levada a efeito num gigantesco auditório do Hotel Nacional. Anotou Márquez em seu livro: “Quando Miguel Littín me contou em Madri o que tinha feito, e como tinha feito, pensei que atrás de seu filme havia outro filme sem ter sido feito e que corria o risco de ficar inédito.” Submetendo Littín a um longo interrogatório, Márquez dava vazão a seu passado jornalístico e se permitiu ser um cineasta em palavras ao fazer o filme de Littín que não tinha vindo à luz.

Diante das cruzes que dispõem os círculos de Márquez, pode-se pensar Cem anos de solidão como um romance (ou poesia épica), uma reportagem latino-americana ou um grande filme cuja existência só poderia, escolasticamente, dar-se em palavras, longe da concretude das imagens duma película.

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a dcada de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicaes de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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