O Declinio do Pensamento Cinematografico
Jacques Audiard sai de um passado de limbo para uma audiencia que talvez nao faca bem a sua estetica de filmar


Durante anos o realizador francês Jacques Audiard foi um daqueles nomes do limbo, conhecido apenas por cinéfilos mais atentos, que se encantaram já com seu primeiro filme, O declínio dos homens (1994), cuja precisão de estilo subvertia uma narrativa policial. Até que, abrindo certas concessões formais, ele chegou a um público maior com O profeta (2009). Agora, por malversados e inesperados caminhos, seu trabalho está na boca de todos, com Emilia Pérez (2024), uma história mexicana filmada em estúdios franceses; quem viu seu filme e quem não viu entra nas rodas de discussão, o que, desde já, caracteriza uma das facetas do declínio do pensamento cinematográfico no século XXI; a cegueira, não se precisa ver, basta atacar; e ataca-se inclusive quem defenda o filme. Sim: o filme, como, em maior ou menor grau, toda obra de arte, tem seus artifícios, o México de Audiard é fruto de sua ficção, desde o roteiro, não é o México de quem vive lá, é o México da cabeça de Audiard, com o narcotráfico, a violência, suas esquisitices. Sim: como todo europeu ou americano que desembarca com sua equipe de filmagem nos países considerados periféricos (John Huston em Uma aventura na África, 1951, Werner Herzog em Aguirre, a cólera dos deuses, 1972, para ficar em duas obras-primas do cinema), Audiard é inevitavelmente colonialista em sua visão de nossos continentes americanos, latino-americanos. Mas Audiard, um homem que filma como se os planos estivessem dirigidos pelos ponteiros de um relógio, faz uma narrativa explosiva, cheia de seiva e vigor, como se requer de um grande filme, que Emilia Pérez de fato é.
Emilia Pérez, como tem ocorrido com algumas produções contemporâneas, tem trechos musicais entre os desenvolvimentos narrativos prosaicos de sua história. Mas isto não determina sua estrutura: Emilia Pérez não é um musical, ao menos não o é no sentido clássico. O começo do filme surpreende uma advogada até o momento em que estranhos a sequestram dentro do submundo meio surrealista do México encenado por Audiard; levada até diante dum chefe facinoroso do narcotráfico, Rita, esta advogada, é surpreendida pelo pedido dele: apesar de ter esposa e filhos, o homem quer transformar-se em mulher, quer que Rita encontre um cirurgião. A despeito de contar no elenco com a intérprete trans espanhola Karla Sofía Gascón (em desempenho notável, numa parceria de grande química com Zoe Saldaña, que vive Rita), Emilia Pérez não assume aquilo que esperam os ideólogos, uma narrativa-trans; é muito mais, à maneira Audiard, uma meditação sobre a natureza humana: a dicotomia Manitas (o gangster) e Emilia (o lado mulher de Manitas) é observada com a explosão estilística do cineasta; esta explosão se torna crucial em dois momentos; quando Emilia se torna violenta com a ex-esposa (de seus tempos de Manitas) ao ver que que Jessi, a ex, se encaminha para um novo relacionamento (ciúme? despeito? confusão?); o segundo momento quando, chegando o realizador a dividir a tela em três na vertical, Rita se põe entre as discussões jurídicas de Jessi e Emilia. A questão-trans de Emilia Pérez transcende a pura determinação física: é mais complexa. Num filme brasileiro recente, Avenida beira-mar (2024), de Maju de Paiva e Bernardo Florim, de maneira mais miniatural e voltando-se para a adolescência, também se trilha esta transcendência para além do físico.
Os aspectos trágicos do fim do filme (o acidente de carro que extermina o triângulo amoroso em combustão, Jessi, seu amante Gustavo e Emilia, o ex-Manitas, o ex-marido) e a solução humanista (Rita adota os filhos de Emilia/Manitas e Jessi, como assumindo, ela, Rita, a responsabilidade do destino do que aconteceu até ali) são elementos adequados ao cinema de Jacques Audiard, que sai de um passado de limbo para uma audiência que talvez não faça bem à sua estética de filmar. Mas assim é a vida, e a vida cinematográfica: há coisas que fogem ao controle.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)


Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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