A Amrica Profunda Segundo Conrad
Nostromo (1904), provavelmente o texto mais concentrado do ficcionista Joseph Conrad
Nostromo (1904), provavelmente o texto mais concentrado do ficcionista Joseph Conrad, que escrevia com a liberdade extrovertida de suas viagens marítimas, está ambientado numa imaginária nação sul-americana onde golpes militares e gládios ideológicos fazem a festa narrativa. É um olhar estrangeiro (um homem nascido na Polônia que compôs sua obra num inglês pessoal e imbatível) sobre certas realidades latino-americanos do século XX; concebido e realizador no alvorecer da centúria, surge de maneira quase profética agora que os cem anos expiraram; dado o pouco contato do artista Conrad com a realidade que expôs e a ausência de documentação em suas mãos, é notável a veracidade de suas notas latino-americanas: isto só se explica pela tão bafejada intuição do artista, um visionário para além da matéria visível.
Magnificamente traduzido por José Paulo Paes, Nostromo é um afresco de época e de situações às vezes balzaqueano em sua obsessão dos detalhes, mas eternamente conradiano em seu estilo que vai enrabando uma frase na outra para compor uma atmosfera literária única dentro da literatura. Admirável pintor de ambientes e pessoas, Conrad faz de Nostromo não um romance político grotesco e esquemático, mas um romance político perpassado de sutilezas psicológicas e agudezas linguísticas; como observa Paulo Paes no posfácio, é o primado da moral sobre a política que vai determinar a orientação narrativa, embora as motivações políticas nunca deixem de pairar sobre todas as águas e criar o rumo romanesco.
Há longos trechos descritivos que se entremeiam no corpo dramático. Um destes trechos é o que abre o romance e dá o senso de espaço e tempo de Conrad: “Na época do domínio espanhol, e por muitos anos depois, a cidade de Sulaco —a luxuriante beleza de seus laranjais dá-lhe testemunha da antiguidade— não tivera maior importância a não ser como porto litorâneo por onde escoava uma produção local bastante grande de couro de boi e de anil.” E por aí segue, até: “Sulaco encontrara um inviolável santuário contra as tentações de um mundo mercantil na solene quietação do profundo golfo Plácido, como se estivesse no interior de um enorme templo semicircular e destelhado, aberto ao oceano, com suas paredes de altas montanhas colgadas de nuvens lutuosas.”
As figuras em cena são ambíguas e tortuosas, como numa boa república sul-americana. O leitor brasileiro saberá identificar os agentes políticos de sempre. A vaidade de Nostromo, uma vaidade pública, e a consciência que lhe ensombra, a do doutor Monyghan. “Mas o doutor Monyghan não pretendia altercar com Nostromo. Nesse supremo ponto crítico dos destinos de Sulaco, ele finalmente admitia que aquele homem era de fato indispensável”. E ainda: “A este último pensamento, o médico teve de limpar a garganta antes de poder falar.”
Assim, Nostromo se põe lado a lado com Eu, o supremo (1974), do paraguaio Augusto Roa-Bastos, e O senhor presidente (1946), do guatemalteco Miguel Angel Astúrias, como uma das mais elevadas realizações literárias que tratam dos confrontos políticos na América do Sul ao longo do século XX.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a dcada de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicaes de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br