Juan Rulfo, Mestre da America Latina
Juan Rulfo publicou pouco. Dois livros nos anos 50
A americanidade da escrita do mexicano Juan Rulfo foi um pontapé inicial de um certo jeito de escrever que temos na América Latina. Suas tensões de estilo agiram, em algum grau, sobre escritores tão diferentes dele e entre si como o colombiano Gabriel García Márquez ou mesmo o argentino Julio Cortázar. Com certa generosidade de olhar literário, o observador pode encontrar ecos de Rulfo até nos incógnitos do sertão do brasileiro João Guimarães Rosa.
Rulfo publicou pouco. Dois livros nos anos 50. O planalto em chamas (El llamo en llamas; 1953), uma coletânea de contos. E o romance Pedro Páramo (Pedro Páramo; 1955), sua obra-prima e um dos achados narrativos de nosso continente. Em ambos (os contos e o romance) Rulfo extrai das raízes populares tudo o que lhe interessa para montar sua estrutura estética. Ainda que tivesse parado de publicar na década de 50, e tendo vivido até 1986, Rulfo sempre se entregou à persona de agitador cultural, tendo sido diretor do departamento de publicações do Instituto Nacional Indígena do México, de 1962 até sua morte.
Pedro Páramo é em parte um romance da busca do pai. Ou das raízes latino-americanas. Já na primeira frase o narrador, que é ali personagem central, evoca: “Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia meu pai, um tal de Pedro Páramo. Minha mãe que disse. E eu prometi que viria vê-lo quando ela morresse.” Mas as vozes que se articulam em Pedro Páramo, apesar da aparência objetiva e despojada da linguagem, são difusas e variadas. Há sons e cores naturais. "Era aquele tempo da canícula, quando o vento de agosto sopra quente, envenenado pelo cheiro podre das saponárias.” É como se o leitor voasse por vários cenários que passam impressivamente mas não se fixam. Uma mulher, Damiana Cismeros, assopra ao narrador: "—Este povoado está cheio de ecos. Até parece que estão presos no oco das paredes ou debaixo das pedras. Quando você anda, sente que vão pisando os seus passos. Ouve rangidos. Risos. Uns risos já muito velhos, como que cansados de rir. E vozes já desgastadas pelo uso. Tudo isso você escuta. Acho que vai chegar o dia em que esses sons vão-se apagar.” E Damiana vai adiante: “Este povoado está cheio de ecos. Já não no espanto mais. Ouço o uivo dos cães e deixo que uivem. E nos dias de vento vê-se o ar arrastando folhas de árvores, apesar de aqui, como você está vendo, não existirem árvores. Devem ter existido em algum tempo, porque senão de onde sairiam essas folhas?” Lá pelas tantas o narrador aparece como mulher, é outra personagem, é um sonho. “Estou deitada na mesma cama onde minha mãe morreu já há muitos anos; sobre o mesmo colchão; sob a mesma coberta de lã preta com que nos embrulhávamos as duas para dormir. Então eu dormia a seu lado, num lugarzinho que ela arranjava pra mim debaixo dos seus braços.” E o sobressalto: “—Foi você quem disse tudo isso, Dorothea?”.
Na busca do pai o encontramos no fim do livro. Como “um monte de pedras”, “foi-se desmoronando”.
Nos contos as cenas também têm sons e imagens, ambos transformados em palavras. E trazem o imemorial latino-americano, como aquele “muitos anos depois” de Gabriel García Márquez. Como no conto “A encosta das comadres”. “Eram os dias em que tudo ficava diferente aqui entre nós.” Rulfo constrói sua excentricidade: e sua magia. As loucuras humanas que ele descreve são literárias. Originam-se na realidade do povo que o formou: originalmente. E expande-se para uma realidade quase cinematográfica. Quero dizer: Rulfo influenciou os que escrevem; mas quer-me parecer que foi lido nos cineastas latino-americanos que fizeram filmes a partir da década de 60, Glauber Rocha e Tomás Gutierrez Alea.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br