A Comdia em Rossellini
Com sede no Armazm da Utopia, o Armazm 6, no Cais do Porto, o Festival de Cinema do Rio 2014 trouxe mais de trezentos filmes para a disposio dos cinemanacos cariocas e de outras plagas que aportassem ali
RIO, 30.09.14, terça-feira
Faz uns três anos os responsáveis pela cultura cinematográfica na Itália começaram algo que chamaram “Projecto Rossellini”: restaurar os filmes do realizador italiano Roberto Rossllini. O primeiro destes filmes restaurados era um Rossellini quase desconhecido em nossos dias, A máquina de matar pessoas más (La machina ammazzacattivi; 1952). Agora, exibindo alguns destes trabalhos recuperados na Itália, o Festival de Cinema do Rio 2014 traz esta realização; é bom vê-lo entre uma contemplação e outra da enseada de Botafogo, fitada filosoficamente por Rubião no século XIX (se você não conhece o Rio e o bairro de Botafogo, não capta o sentido deste verbo-particípio-feminino “fitada” e muito menos do advérbio que o acompanha, nem nunca ouviu falar em Rubião e tem dificuldades de imaginar que um dia houve um século XIX, deixa pra lá; tudo são digressões de um viajante em busca de cinema, algo bem rosselliniano, vamos convir).
A máquina de matar pessoas más foi lançado no mesmo ano de um dos filmes referenciais de Rossellini, Europa 51 (1952). Quer dizer, Rossellini estava sob a magia de sua relação com a atriz sueca Ingrid Bergman; uma lua-de-mel, pois. A felicidade de Rossellini se reflete no sentido de comédia que ele impõe a esta sua narrativa, que começa e fecha com um narrador-over e se estrutura como um conto moral humanista e cristão à feição de um cérebro como o de Rossellini. É como se o diretor, amenizando as questões sociais, metafísicas, históricas e antropológicas que ele transformou em cinema como ninguém, apanhasse aquele humor popular italiano que foi utilizado por conterrâneos seus como Mario Monicelli, Luigi Comencini ou Dino Risi, e acabasse refinando este humor com sua transcendência de filmar única. A linguagem e as personagens são simples em A máquina de matar pessoas más; porém Rossellini nunca baixa a guarda de suas exigências cinematográficas: em momento algum brutaliza o cinema; seu sentido do cômico e da arte popular é bem outro que não aquele das concessões constantes a que o cinema se habituou, e nos habituou.
As relações entre um demônio e um fotógrafo coordenam um universo de complexidades humanas entre o bem e o mal; Rossellini, como os grandes moralistas franceses de antanho, se diverte com o comportamento dos homens sem deixar de aprofundar suas reflexões tão naturais e agudas. Como bom italiano, Rossellini se vale do pecadilho de femeeiro entre as perturbações do ser masculino peninsular; uma bela americana, de carnes fartas como aquelas de Federico Fellini, outro diretor italianíssimo, vai excitar a turma masculina nas cenas de Rossellini. Igualmente a religiosidade, como o seguiria Fellini, perturba a calma da imagem: procissões, imagens de santos planando no centro da imagem, funerais contritos se enovelam por ali. A máquina de matar pessoas más é também uma crônica de interior: passa-se num lugarejo em que Santo André é o rei da fé. De fé, demos fé, Rossellini sempre nos falou.
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a dcada de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicaes de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br