O Artista e a Falsificação
Tim Burton é um artista que busca desafogar a questão da sinceridade artística em Olhos Grandes
Tim Burton é um artista que busca desafogar a questão da sinceridade artística em Olhos grandes (Big eyes; 2014). O cineasta não está exatamente em seus instantes mais criativos (poucas vezes na verdade Burton, um homem da fantasia solta, adquiriu uma criatividade essencial), mas tampouco faz um filme de que o espectador possa desinteressar-se inteiramente.
Antes de mais nada, Burton buscou num episódio real das turbulências americanas do século XX uma matéria que serve a uma de suas obsessões como artista, o engenho do artista diante da falsificação da arte em nossos dias. Margareth Keane é a talentosa pintora que se obscurece para dar lugar ao brilho mundano de Walter Keane, seu marido, um pintor frustrado. Eles enriquecem com a venda dos quadros que ela pinta, porém a autoria ele próprio se atribui no furacão do mercado. Os olhos grandes e amedrontados de crianças que Margareth Keane expõe com sua arte são o elemento fantástico de que o cinema de Burton precisa para edificar-se como tese sob a forma de drama cinematográfico.
Pode-se dizer que Burton tangencia, na figura cínica de Walter, o retrato de uma posição artística falsificada, coisa que outro americano, Orson Welles, descortinou em seu derradeiro filme, Verdades e mentiras de Orson Welles (1975). Quem é o autor de uma obra de arte? Que significa o comércio em arte? Seria a falsificação uma das essências (natureza ou perfume) da própria arte, mesmo na pele sincera de Margareth, que conluiou com Walter para só muitos anos depois, separada dele, processá-lo e destruí-lo? O português Fernando Pessoa usa o termo “fingidor” para seu poeta, ou autopoeta. Finge-se sempre: ao escrever ou ao utilizar escritos de outros. Nos anos 80 um jovem santista metido nas lides cinematográficas de Porto Alegre, Renato Pedroso Júnior, escreveu um artigo, para uma revista séria de cinema, “Moviola”, editada pelo Clube de Cinema de Porto Alegre, em que o objeto de sua análise era um filme que nunca existiu; assim, a própria crítica cinematográfica de Renato —brilhante todavia— era falsa.
Tim Burton parece discutir assuntos assim. Seu próprio filme padece de alguma sinceridade. E é também um pouco como se os conceitos deste próprio comentário que escrevo pudessem aplicar-se a um filme que não existisse e não a este palpável Olhos grandes. Como a velha crítica escrita fantasiosamente, sob uma capa realista, por Renato Pedroso Júnior.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br