Uma Porto Alegre Cinematográfica
Tinta bruta (2018), filme realizado pelos gaúchos Filipe Matzembacher e Marco Reolom, é uma surpresa
Tinta bruta (2018), filme realizado pelos gaúchos Filipe Matzembacher e Marco Reolom, é uma surpresa. Antes de mais nada, porque o senso de cinema dos realizadores se depurou sobremaneira desde o frouxo e incipiente Beira-mar (2015). Depois, porque a utilização da cenografia da cidade de Porto Alegre é feita com uma plasticidade, noturna e um pouco surrealista, como ainda não se vira no cinema feito aqui no sul do país. Trata-se duma narrativa que devoramos assim à medida que ela nos devora.
A temática do sexo homossexual ainda e sempre é o que informa o cinema de Matzembacher e Reolom. A personagem de Pedro faz performances na internet utilizando tintas e dançando despido e pintado para provocar esteticamente quem vê as cenas. O filme acompanha também a vida de procura do prazer no mundo noturno porto-alegrense por parte de Pedro. Lança em cena os problemas da personagem com um processo criminal, documenta as dívidas da criatura para com o aluguel da pensão onde mora com a avó. Há sequências de nus masculinos bastante fortes, com as genitálias enrijecidas em primeiro plano; há um tom explícito e despudorado no sexo mostrado ou encenado, e neste tom o espectador pode ver às vezes um desabafo fílmico da solidão urbano-provinciana. Dentro desta solidão assoma uma relação mais afetiva para Pedro na figura dum amigo negro, homossexual com quem ele protagoniza algumas sequências tão eróticas quanto poéticas, no sentido mais ou menos pasoliniano; antes, no começo da narrativa, o que salvava Pedro da carnalidade quase vazia de espírito era o aparecimento da irmã em alguns quadros, mas logo ela está de partida para outra cidade e o deixa entregue a si. O carnal, com a ida da irmã e depois com a partida de seu amigo preto, se torna a própria tinta bruta da vida que se transforma em cinema.
A temática homossexual como forma cinematográfica, que Tinta bruta realiza com grande transbordamento que não impede o rigor, tem no cinema de hoje no francês Alain Guiraudie (Um estranho no lago, 2013; Na vertical, 2016) um cultor elevado. Matzembacher e Reolom buscam este caminho. Solitariamente por aqui, é verdade. Pois não é da solidão do jovem urbano que eles tratam em Tinta bruta? Assim como o sul-coreano Lee Chang-Dong retrata jovens amargamente solitários, quase incomunicáveis em Em chamas (2018). O sexo, em quaisquer de suas formas, é a tentativa (às vezes, infrutífera) de romper a incomunicabilidade e os desacertos entre os seres.
P.S.: Um dos achados da realização é a participação, direi, afetiva da grande atriz, principalmente de teatro, gaúcha Sandra Dani. Já com bastante idade, mas ainda luminosa. Ela faz a avó do protagonista.
(Eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br