Nao Somos: Somos o Espetaculo

Guy Debord agrupou algumas de suas visoes essenciais do mundo em seu ensaio A sociedade do espetaculo

24/03/2022 12:26 Por Eron Duarte Fagundes
Nao Somos: Somos o Espetaculo

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O francês Guy Debord é um dos mais influentes pensadores do mundo. Torturado por sua própria originalidade em seu tempo, Debord agrupou algumas de suas visões essenciais do mundo em seu ensaio A sociedade do espetáculo (La société du spectacle; 1967). Em seu livro ele refaz algumas teorias do alemão Karl Marx em torno das relações capitalistas, adaptando-as, com extrema perícia, ao universo do mundo de imagens e espetáculos em que ele, como indivíduo do século XX, viveu; o resultado é pura inventividade, uma releitura muito particular do antecessor. Já nas orações que abrem suas reflexões ele ataca o coração de seu imaginário filosófico: “Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção se anuncia como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido se distanciou na representação.” (“Toute la vie des sociétés dans lesquelles règnent les conditions modernes de production s’annonce comme une immense accumulation de spectacles. Tout ce qui était vécu s’est eloigné dans la répresentation.”).

Em vários momentos de seu texto —arguto, minucioso— Debord busca encontrar o fio da meada, o momento preciso em que o homem deixou de ser para ser o espetáculo. A questão das classes históricas (burguesia e proletariado), erigidas por Marx, não são desdenhadas por Debord: ele as levanta da tumba marxista para descobrir como elas se transformaram nestas sociedades e nestes espetáculos. Há algo de epigramático em certas constatações de Debord: “Le spectacle n’est pas un ensemble d’images, mais un rapport social entre des personnes, médiatisé par des images.” (“O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens.”) Debord, naturalmente, deu no filósofo Jean Baudrillard e no cineasta Jean-Luc Godard, autênticos homens-ensaio de nosso tempo; Debord os retratou previamente em seu livro, para além de dar uma forma marxista aos rutilantes meios visuais que começavam a explodir no coração dos anos 60 do século passado.

“Le caractère fondamentalement tautologique du spectacle découle du simple fait que ses moyens sont en même temps son but.” (“A característica fundamentalmente tautológica do espetáculo decorre do simples fato que seus meios são ao mesmo tempo seu fim.”). O homem plasmado pelo século XXI seria a forma pura? Não somos mais: somos o que aparecemos, somos o espetáculo. É um desenvolvimento que veio século a século? Debord investiga, investiga: investiga. Vemos, ou lemos, em A sociedade do espetáculo sua busca: ela faz constatações, mas a natureza de todas estas coisas permanecerá à margem. Debord mergulha no tempo e suas alterações nos últimos séculos: “Alors que le temps cyclique était le temps d’illusion immobile, vécu réelement, le temps spectaculaire est le temps de la réalité qui se transforme, vécu illusoirement.” (“Enquanto o tempo cíclico era o tempo de ilusão imóvel, vivido na realidade, o tempo espetacular é o tempo da realidade que se transforma, vivido ilusoriamente.”). Sinuosidades de um olhar de um filósofo; lá pelas tantas, perdidas em palavras, teses e ideias, como um novo Wittgenstein, Debord se suicidou em 30 de novembro de 1994. Não encontrou o fio da meada de seu excitante raciocínio, fascina e ao mesmo tempo amedronta que seu suicídio tenha sido filosófico neste sentido, procurar a gênese do espetáculo em que todos nos transformamos.

O FILME

Em 1973 Debord fez seu filme A sociedade do espetáculo. Apanhou as teses que lhe pareceram essenciais em seu livro, pôs imagens em movimento e algumas fotografias e sobre estes aparatos visuais jogou sua voz monocórdia para dizer seu próprio texto. O resultado de inquietação cinematográfica é extraordinário. Ele faz de seu filme o apogeu de uma de suas sentenças: “O espetáculo em geral, como inversão concreta da vida, é o movimento autônomo do não-vivo.” Ele se vale de vários excertos de filmes, a arte-espetáculo característica do século: Rio Grande (1950), de John Ford; Johnny Guitar (1954), de Nicholas Ray; Tensão em Shanghai (1941), de Josef Von Sterneberg; O intrépido general Custer (1941), de Raoul Wash; Mr. Arkadin (1955), de Orson Welles, mostrando a cena em que Welles/Arkadin fala a seus circunstantes, em grande angular, sobre o apólogo do escorpião e da rã, “é minha natureza”, diz o escorpião à rã; Por quem os sinos dobram (1943), de Sam Wood; O encouraçado Potemkin (1925), de Sergei Eisenstein, as cenas da escadaria de Odessa. Debord faz uma grandiosa devassa entre seu livro e as imagens-espetáculo que cata.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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