A Alma do Cinema Se Rompe em Malick

O corte dentro do movimento cinematográfico é o que está na raiz de Amor Pleno, filme de Terrence Malick

01/04/2014 16:30 Por Eron Fagundes
A Alma do Cinema Se Rompe em Malick

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O corte dentro do movimento cinematográfico é o que está na raiz de Amor pleno (To the wonder; 2012), o novo filme  do americano Terrence Malick e que parece avançado demais mesmo para aqueles que amam seu cinema ou que possam estar tarimbados em experiências fílmicas diferentes. A câmara em Amor pleno está quase sempre em movimento, buscando um fragmento de cenário, de corpo ou de gesto: um fragmento visual-sonoro que se predispõe à interrupção, o movimento interrompido pelo olhar da câmara, o plano móvel visto pelo corte. Este constante corte dentro da câmara em movimento buscado e rebuscado em Amor pleno é herdeiro remoto e muito pessoal daqueles olhares (movimentos) labirínticos do francês Alain Resnais em O ano passado em Marienbad (1961); como Resnais, Malick capta o tempo no interior do espaço cinematográfico, as imagens cinematográficas são como flutuações da memória estética; mas, diferentemente de Resnais, utiliza muito mais a encenação metafísica que os delírios de um teatro barroco — a palavra em Malick está mais próxima dos vazios de sentido do romancista tcheco Franz Kafka do que das metáforas e sensações poéticas do escritor francês Marcel Proust (que é certamente a fonte, subvertida, de Resnais e Alain Robbe-Grillet em Marienbad).

Pode-se dizer que, em seus trabalhos mais recentes (e Amor pleno pode ser o pico destas mudanças), Malick se vai afastando dos americanismos que nortearam os princípios de sua filmografia. Basta pensar em Terra de ninguém (1974), onde cenários desolados eram utilizados de maneira muito americana, ainda que suas evasões formais fugissem aos compromissos comuns em Hollywood. Em Amor pleno os cenários são tortuosamente rompidos juntamente com o movimento cinematográfico; é a alma do cinema que se esfacela em Malick e seu filme, ficando uma alma em pedaços, os quais nosso olhar, com muito custo, tenta vislumbrar como imagens oníricas e fugidias dentro do espaço que é o tempo no cinema —à maneira, por exemplo, de visões de delírios.

A voz-over, recurso intensamente expressivo nos filmes de Malick, é uma Babel temporal em Amor pleno, uma explosão múltipla da linguagem. Por esta voz-over escorrem textos em francês (o mais abundante), em inglês e até mesmo em espanhol quando toma da palavra o padre vivido por Javier Bardem. Nas vozes-in, mais uma língua para incrementar a torre: o italiano. As perambulações europeias (especialmente Paris) e as voltas americanas servem a dar textura a esta agora difusa voz-over de Malick: apanhar uma espécie de tempo na terra.

Para além da exposição de línguas faladas pelos seres humanos, a voz-over (e, em escala menor, mesmo a voz-in) traz uma tensão entre a palavra e a imagem que vem a revolucionar o próprio jeito de encarar esta relação palavra-imagem. Os conceitos verbais criteriosamente padrão algumas vezes (como no filósofo Platão), em outras perdidamente poéticos (como no poeta Rimbaud) chocam-se contra imagens de abundância visceral, contraditórias entre elas mesmas e para com aquilo que está sendo dito em cena ou em torno da cena. Mais do que nunca, Malick se vale da filosofia como elemento de construção do drama cinematográfico; sem o germanismo metralhador do alemão Alexander Kluge, Malick é mais desconsoladamente americano em sua globalizante visão do destino humano na terra. E acaba ressuscitando a morbidez  dos finais abruptos que já não se faz no cinema.

P.S.: Uma curiosidade para quem já esteve lá, é ver, entre aqueles movimentos de câmara metafísicos (um pouco à maneira do italiano Bernardo Bertolucci em O último tango em Paris, 1972, que filma no início de sua narrativa um soturno desvio da câmara num viaduto parisiense) entre as pontes e os calçadões do rio Sena, os famosos “cadeados do amor” numa das pontes do rio. O esquisito para o espectador de cinema é que esta tirada de turismo romântico foi também usada pelo francês Louis Leterrier em seu vulgaríssimo Truque de mestre os ilusionistas, 2013. O que comprova que os sintagmas do cinema podem servir a dois senhores: ou mais.

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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