A Demência Como Entidade Narrativa

Uma Mulher Sob Influência (A woman under the influence; 1974) é um dos trabalhos mais estimados de John Cassavetes: merecidamente

04/11/2016 23:31 Por Eron Duarte Fagundes
A Demência Como Entidade Narrativa

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John Nicholas Cassavetes foi um dos primeiros cineastas norte-americanos a desafiar, com seus filmes financeiramente modestos, ritmo peculiar e assuntos do cotidiano, a estrutura megalomaníaca dos grandes estúdios, que procuravam ditar o que era cinema e engessar os cineastas nestes ditados. Uma mulher sob influência (A woman under the influence; 1974) é um de seus trabalhos mais estimados: merecidamente. Trata-se duma referência obrigatória no estudo em imagens cinematográficas da demência familiar estadunidense; uma quarentona Gena Rowlands, esposa do realizador, interpreta Mabel, uma dona-de-casa instável que perturba e é perturbada por suas relações com o marido, com os filhos, com seus pais, com a sogra, com os amigos asquerosamente dedicados; Mabel é uma das grandes personagens do cinema americano e a interpretação de Gena é o que há de definitivo na captação de um estado de mulher em ebulição interior; décadas depois, na velhice, Gena, que nos anos 70 era a intérprete dos filmes de seu marido, virou, com a mesma energia e brilho e agora as contenções da maturidade, a estrela de alguns filmes de Nick Cassavetes, o filho dela com John, como Diário de uma paixão (2004).

Cassavetes utiliza aquilo que em Hollywood nunca foi visto com bons olhos: o senso de improvisação. A insanidade de Mabel e de todos os que a cercam é atirada às feras do cinema, está tudo muito solto e livre, as coisas parecem ser criadas no momento mesmo em que se está encenando, é uma coisa viva, pulsante, a loucura é dinâmica, se inventa a cada fotograma; graças a este estilo libertário de filmar, a demência é muito mais narrativa do que temática, nasce do olhar e da voz e das expressões corporais de Gena (e também de Peter Falk, muito criativo, e de todo o elenco, inclusive as crianças) e se incrusta nos liames da linguagem. Mas a improvisação em Cassavetes não é fruto dum amadorismo inconsequente, que provoca o ranço e a falta de jeito para o cinema; sua busca do frescor que vem do cinema amador, caseiro (ele arrecada amigos e faz um cinema do cotidiano, mas que nunca lembra o que os franceses costumam fazer neste gênero: Cassavetes é americaníssimo em suas objetividades estéticas) não impede que vislumbremos sua propensão para os pequenos rigores, ele joga toda a improvisação de suas encenações numa estrutura que ele arma sem hesitações mas igualmente sem engessar: um rigor que deixa brechas para a liberdade e uma improvisação que se vai organizando dentro deste rigor.

Mabel, que feitiço! Gena, que paixão! Nick, o operário vivido por Falk, trabalha incessantemente; como sói acontecer, deixa suas relações familiares rolarem sem cuidados. Mabel, mulher de Nick, vai perdendo o equilíbrio ao sentir-se só; dispensa as crianças para um fim de semana com sua sogra, o marido vai permanecer no trabalho e ela se sente abandonada; sai à noite para um bar, topa com um homem e o leva para a casa onde vive com Nick. Inevitavelmente o delírio e o circo familiares agravam seu estado mental: decidem interná-la. Seis meses depois, sua esperada volta revela que as coisas talvez estejam piores. Todos se desequilibram. Cassavetes filma lentamente, sem pressa os passos narrativos. Há sequências torturantes, como os filhos colados à sua mãe louca, ela com a mão ferida, arrastando-se pela casa. Cassavetes exacerba em alguns grandes planos fechados que captam as obscuras interioridades das personagens. Certas angulações estranhas e posições da câmara à retaguarda dos atores remetem o cinema de Cassavetes a uma experimentação de linguagem talvez única no cinema americano. Cassavetes talvez não tenha ido tão longe quanto Orson Welles ou Jean-Luc Godard, mas foi um dos que contribuiu para que o cinema não estacionasse formalmente.

No final do filme, após a retirada de todos os que na casa estavam para saudar a volta de Mabel do manicômio, as personagens de Falk e Gena se põem a arrumar a bagunça que sobrou na mesa. Um pouco as personagens estão agindo, um pouco os próprios atores estão fazendo estes gestos que a câmara está documentando. A cena se dá um pouco dentro da ficção do filme (na casa de Mabel e Nick), outro tanto é como se Falk e Gena, no set de filmagem, ajudassem John a limpar o cenário meio bagunçado em que rodou seu filme. Quando Nick diz a Mabel, “Vamos arrumar esta bagunça”, é também Falk quem diz a Gena, sob o olhar libertário e percuciente de John.

Vale ao cabo lembrar que John Cassavetes, além de grande cineasta, foi um ator de notáveis recursos. Ele interpretou o marido aparvalhado da criatura de Mia Farrow em O bebê de Rosemary (1968), do polonês Roman Polansky. Pensando bem, há uma ligação entre estes fios de estranheza que o ator John libera em seus papéis e aquela perversa familiaridade que uma direção como a de Uma mulher sob influência exala.

 

P.S.: Ocorreu-me retomar este texto que escrevi em 2007 quando ouvi uma entrevista do jovem diretor brasileiro Gustavo Rosa de Moura e sua atriz Marina Person a propósito do filme de estreia de Gustavo Canção da volta (2016), segundo seu diretor calcado nas várias visões que teve da obra-prima de Cassavetes.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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