A Demencia Cotidiana de Sylvia Plath
Cada palavra de A Redoma de Vidro corta a personagem e expele o sangue para o leitor
A escritora norte-americana Sylvia Plath suicidou-se em 1963, aos trinta anos de idade. Numa vida curta compôs alguma poesia e um só romance, A redoma de vidro (The bell jar; 1963). É este romance onde a afeição pelo cotidiano (de linguagem e gestos) vai tecendo uma estranheza de composição que vem desta narradora de primeiros passos onde a autora despeja uma parte substancial de sua alma.
Escritoras que se matam me levam à inglesa Virginia Woolf e à brasileira Ana Cristina César, esta uma tradutora de poemas de Sylvia. A Esther Greenwood de A redoma de vidro é inevitavelmente a transfiguração literária da personalidade de Sylvia, que inicia sua história com aquele parágrafo de choque, uma forma de dar na banalidade da vida da protagonista um eletrochoque através de um acontecimento excepcional, um fato jornalístico, jurídico e policial da época. “Era um verão estranho e opressivo aquele em que eletrocutaram os Rosenberg, e eu não sabia o que estava fazendo em Nova York. Não entendo de pena de morte. A ideia de ser eletrocutada me dá náuseas e esse era o único assunto dos jornais —manchetes garrafais me olhavam em cada esquina em cada sufocante saída de metrô cheirando a amendoim. Aquilo não tinha nada a ver comigo, mas eu não conseguia parar de pensar em como seria ser queimada viva, até os nervos.”
O processo por que passa Esther, ao longo do livro, de sanatório em sanatório, de cenário em cenário, topa nesta metáfora dos Rosenberg —queimar-se vivo, sofrer os choques elétricos —um ponto de comunhão preciso. Cada palavra de A redoma de vidro corta a personagem e expele o sangue para o leitor, mesmo que a narradora se valha dum despojamento tipicamente ianque, mas permeada de uma atmosfera que difere este despojar-se daquela classe americana de F. Scott Fitzgerald e Ernest Hemingway. A nervura da poetisa moderna, contemporânea cruza terrivelmente as frases de A redoma de vidro; sua autopersonagem é uma alucinação só, instintiva e profunda, tão boa quando aquela, muito diferente, do também americano Henry Miller: as viagens desestruturantes do verbo de Miller não existem em Sylvia, que faz miniaturas locais muito ordenadas e rigorosas, que só se abrem para o abismo de sua demência.
Esta demência (um senso poético de viver a vida e a literatura) vem grudada nas palavras, repletas de sensações e sentidos. “Uma camada de neve fresca cobria os gramados do hospício como um mato branco — não era pouca neve, como a de Natal, mas uma nevasca da altura de um homem, como as que ocorrem em janeiro e durante um dia ou mais transformam escolas, escritórios, igrejas e folhas numa página em branco no lugar das folhas de memorando, agendas e calendários.” Se esta aguda novela (um quase-romance?) começa de forma muito precisa, marcando com um fato o sentido duma época e os trânsitos de sua personagem central, a frase de encerramento é vaga e é vaga e longínqua, pois revela um passo incógnito da personagem quando entra num recinto: “Todos os olhos e os rostos se viraram para mim e, me orientando por eles como através de uma luz mágica, entrei na sala.” Que acontecerá depois? O fim do livro é uma grande elipse narrativa. Talvez nesta elipse Sylvia sentisse a tentação de mostrar coisas que ela disse em seus poemas e em sua ficção se esgueiraram pelos cantos: “Vivo ameaçada por este ser escuro // Que dorme em mim; / / O dia inteiro sinto seus macios, malignos movimentos.” (este poema de Sylvia está aqui na tradução de Ana Cristina César).
Um amigo escritor me confidenciou um dia destes que escreve para não enlouquecer. No entanto, há casos, ou chega um momento, em que nem mesmo a literatura (ou a escrita) nos salva. Enlouquecemos.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br