A Demencia Social: Permanencia e Mudancas no Cinema de Ken Loach
Vida em Familia traz um certo jeito de filmar as questoes sociais a partir dos conflitos familiares
Em seus primeiros anos o diretor inglês Ken Loach se envolveu basicamente com produções para a televisão. Não a televisão comercial e digestiva, tal como se entende por aqui, mas trabalhos televisivos marcados, ao que se diz, antes pelo rigor formal e o compromisso crítico. Naturalmente seu primeiro sucesso nos cinemas, a obra-prima Vida em família (Family life; 1971), trazia a marca desta objetividade de filmar quase naturalista, e era uma refilmagem, para cinema, duma realização para a televisão, In two minds (1967); tanto Vida em família quanto a obra televisiva foram roteirizados por David Mercer, cuja precisão de anotações e engenhos de diálogos e verbo Marcer voltaria a dispor na praça em outra obra-prima do cinema, Providence (1976), dirigida pelo francês Alain Resnais.
Vida em família traz um certo jeito de filmar as questões sociais a partir dos conflitos familiares que parece comum à boa parte do cinema crítico então feito. Mas, para quem conhece o cinema de Loah das décadas seguintes, entre grandes filmes distantes, como Terra e liberdade (1994) e Jimmy’s Hall (2014), o que se vê em Vida em família acusa tanto a distância no tempo (mutações) quanto permanências de uma coerência estética e humana de um artista como Loach, agora abeirando-se dos 90 anos, mas ainda lúcido e enérgico para fazer seus filme de sempre, como se viu recentemente em Eu, Daniel Blake (2016).
Vida em família debruça-se sobre um problema de geração no cruzamento entre as décadas de 60 (a liberação de costumes) e a de 70 (uma certa ambiguidade moral e alguns paradoxos de comportamento). Janice, em magnífica interpretação da atriz inglesa Sandy Ratcliff, hoje já falecida, é a adolescente que problematiza seus pais. Ela começa o filme conversando com um psiquiatra (ou terapeuta). Ela é vaga e instável ao falar de seus pais. No correr do filme, o conservadorismo moral dos pais exacerba a problematização da filha. De maneira elíptica, em escassos diálogos, se revela que ela engravidou de seu namorado. Quando o espectador se dá conta, no correr das cenas, outros diálogos rápidos revelam que os pais dela obrigaram a moça a fazer um aborto. Ela queria ter o filho. Janice acaba em internações por ser considerada esquizofrênica: eletrochoques e tranquilizantes a adulteram. Loach é extremamente crítico em sua visão do mundo burguês familiar. Não chega a transbordar psicanaliticamente como Uma mulher sob influência (1974), do americano John Cassavetes; mas utiliza com rigor dramatúrgico a psicanálise disponível dos anos 60.
Há uma cena lateral da visita da irmã de Janice, com os filhos pequenos, à casa dos pais: Janice estava ali. E o que se desenrola à mesa, em planos e conversas ásperas, é um novo circo de loucuras: estabelece-se que a irmã mais velha tinha problemas com a família por sua rebeldia e acaba, no fim da cena, sendo corrida dali pelos pais. A sequência final em que um grupo de professores médicos se reúne para uma dissertação sobre esquizofrenia e Janice, que está interna, entra na sala para servir de modelo à teoria, lembra a utilização de aspectos do circo no cinema, o “homem elefante” de David Lynch ou “a Lola Montés” de Max Ophüls; ainda que Loach caminhe num sentido estético diverso de Lynch e Ophüls.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br