O Homem Demente Num Retrato de Crueldade
Reportagem, ensaio, romance. Vozes de Tchernobil (1997) segue as pegadas multifacetadas da escritura do seculo XX
Reportagem, ensaio, romance. Vozes de Tchernóbil (1997), livro escrito pela ucraniana Svetlana Aleksiévitch, segue as pegadas multifacetadas da escritura do século XX. Os sertões (1902), do brasileiro Euclides da Cunha, que é uma obra bem mais clássica, já trazia este problema classificatório do gênero literário. Vozes de Tchernóbil vizinha com mais transparência com as possibilidades jornalísticas da literatura. Nascido como uma reportagem sobre um fato capital do século XX, as explosões nucleares de Tchernóbil em abril de 1986, Vozes de Tchernóbil usa de maneira disparatada e acelerada uma série de depoimentos que a autora colheu junto a pessoas que vivenciaram de maneiras diversas a tragédia nuclear, mas acaba transformando estes depoimentos iniciais pela dimensão literária, pela utilização soberba dos aspectos trágico-épicos do acontecimento. Quem viveu, perto ou longe, o delírio de Tchernóbil não passa indiferente sobre a demência do homem retratada com as tintas mais cruéis possíveis.
“O sarcófago é um defunto que respira. Respira morte.”, anota-se lá pelas tantas, para início de conversa. As características flutuantes das etnias russas (ucranianas, entre elas) catapultam ainda mais a essência trágica. “Nós tínhamos uma pátria, agora não temos mais. Quem sou eu? A minha mãe era ucraniana e o meu pai, russo. Nasci e cresci na Quirguízia, o meu marido é tártaro. Quem são meus filhos? Qual é a nacionalidade deles? Todos nós nos misturamos, o nosso sangue se misturou. Nos passaportes, no meu e nos dos meus filhos, está escrito que somos russos, mas não somos! Nós somos soviéticos¹” Complexo demais para a compreensão ocidental. Apátridas no interior da pátria. E então, Tchernóbil...
“Você mesmo viu. O corredor está cheio de doentes. Eles esperam. Eu escuto diariamente cada coisa, que os horrores a que vocês assistem pela tevê não passam de tolices. Transmita isso ao prefeito da capital. Tolices.” Vozes de Tchernóbil vai na alma de um fato, e o apanha em voo: pura felicidade literária, trabalho e talento. “Tchernóbil é um tema dostoievskiano.” Uma aura se manifesta. “Somos metafísicos.” E desmorona-se na inutilidade: “Li muitos livros, vivo entre livros, mas eles não podem explicar nada.” Vozes de Tchernóbil é um resgate estético diante desta inutilidade antevista.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br