Goethe, um Espírito do Tempo
O espírito alemão, o espírito do tempo está inteiro em Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister
Segundo o eminente crítico húngaro Georg Lukács, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (Wilhelm Meister Lehrjahre; 1808) “é o mais significativo produto de transição da literatura romanesca entre os séculos XVIII e XIX.” E mais: “exibe traços de ambos os períodos de evolução do romance moderno, tanto ideológica quanto artisticamente, na verdade.” Isto é: antes do realismo vulgar do francês Honoré de Balzac, bem antes da psicologia sintática refinadíssima do francês Marcel Proust, o alemão Johann Wolfgang Von Goethe optou por um estilo aristocrático de narrar que herda do romantismo germânico (que ele já exercitara magistralmente em Os sofrimentos do jovem Werther, 1774) e no entanto pretende fazer avançar no caminho que viria a dar nestes romances-ensaio do século XX: ou seja, um profeta-esteta este Goethe que lemos no Wilhelm Meister.
Na verdade, romance de formação (gênero que Goethe inaugurou aqui), Wilhelm Meister é o retrato do artista quando sempre: as relações do artista com os contemporâneos e com a própria sociedade em que ele se está gerando. Neste aspecto, as longas dissertações e descrições da encenação de Hamlet (Shakespeare) proposta pelo protagonista são significativas no processo de pensar sobre a arte e a sociedade erigido por Goethe em seu livro; é bom lembrar que Hamlet e Shakespeare são longamente evocados na encenação do filme em Fanny e Alexander (1982), o último filme para cinema do sueco Ingmar Bergman, o que leva a meditar na eternidade de Goethe e sua influência sobre alguém como Bergman, mesmo que a referência imediata (de ambos) seja Shakespeare, “o que paira sobre todos”. Escreve Goethe: “Bastara a leitura de umas poucas peças de Shakespeare para que se produzisse em Wilhelm um efeito tão forte, a ponto de não se sentir em condições de continuar lendo. Toda sua alma estava tomada de uma grave comoção. Procurou ocasião de falar com Jarno e não soube como expressar toda sua gratidão pelo prazer que este lhe havia proporcionado.” No texto-roteiro de Bergman para Fanny e Alexander se lê: “Os ensaios de Hamlet começaram há algumas semanas e a estreia está prevista para meados de janeiro. Hoje é o primeiro dia de trabalho depois das festas e, se excetuarmos os habituais resfriados e as dores de estômago, o pequeno grupo já se encontra mobilizado sob a direção experiente do Senhor Landhal.” Bergman exibe a mesma paixão shakespeareana de Goethe. Ocorre aí a ligação de espíritos.
O espírito alemão, o espírito do tempo está inteiro em Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. “Nenhum alemão é capaz de afivelar um sapato sem que o tenha aprendido com alguma nação estrangeira!” As coisas triviais não são com os alemães: desde Goethe. Eles têm de aprender estas coisas com os estrangeiros. Mas no espírito e no intelecto eles são mestres insuperáveis. Na última frase Wilhelm replica: “Não sei o valor de um reino, mas vi que alcancei uma felicidade que não mereço e que não trocaria por nada do mundo.”
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br