O Século XXXI Vê Maio de 68
João Moreira Salles dedica seu documentário No intenso agora (2017) ao decano dos documentaristas brasileiros, Eduardo Coutinho
João Moreira Salles dedica seu documentário No intenso agora (2017) ao decano dos documentaristas brasileiros, Eduardo Coutinho, falecido em condições trágicas em 2014: a dedicatória está após a projeção do filme, quando baixam os créditos. Sabe-se, por entrevistas e ensaios, que João tem uma atrção forte pelo cinema de Coutinho; sabe-se também, pela visão dos filmes de um e outro, que João compõe narrativas mais artificiais, mais literárias, mais áridas e se situa em alguns aspectos de linguagem no oposto de Coutinho, cujo veio natural poderia ser uma das aspirações de João, uma aspiração que não se concretiza, felizmente, porque não seria um João autêntico, e de pastiches o cinema em muitos anos anda cheio. O que ocorre? Os refinamentos intelectuais e estéticos de João topam um caminho inusitado para o cinema brasileiro, e os achados que dali brotam são tão fundamentais quanto aqueles de Coutinho.
No intenso agora surge dez anos depois da última realização de João, Santiago (2007). O mote para aquele filme era a figura do mordomo familiar, cujos interesses pela arte perturbavam a divisão de classes outrora incorporada pelo menino agora cineasta. (Numa determinada imagem de arquivo de seu novo filme, com seres anônimos, filmagem amadora, o cineasta-narrador faz o questionamento da cena, onde a câmara, pretendendo acompanhar os primeiros passos dum bebê burguês, revela uma outra coisa: as relações de classe, pois a babá se retira discretamente do plano e ao canto deste plano o corpo desta babá se confunde, ou passa por, com os figurantes da multidão na calçada). O impulso para voltar a fazer cinema, para finalmente fazer um novo filme, que é o que o espectador está vendo na tela, é o diário da mãe de João quando foi à China em 1966, ela uma mulher jovem, rica e feliz; encontrando imagens de filmes amadores daquela viagem, o realizador as funde com o texto do diário em sua fala diante da imagem. Todo o desenvolvimento de No intenso agora tem na voz-over de João, em sua particular entonação de frases cerebrais, o ditado de um ritmo narrativo. A mãe de João na China, observa o filho, dá com um mundo que é o seu contrário, e anseia por este contrário; assim como Coutinho difere de João, ainda que este anseie por aproximar-se daquele na maneira de expor o mundo em imagens. É a curiosidade de alma que conduz João a Coutinho, de certa maneira, também seria isto que vai levar aquela mãe burguesa ao universo da China maoísta? Uma imagem que o diário revela como fonte de fascínio na mente da mãe e que as filmagens de arquivo reiteram: as mãos chinesas se articulando no espaço, como um baile; é algo que acaba por persistir, em texto e imagem, na própria consciência do observador. O longínquo próximo.
Saindo de seu gueto familiar (uma evocação à mãe), João acaba tecendo um painel das turbulências pelo mundo no ano central, 1968. Os movimentos de maio de 1968 na França sob De Gaulle, na Tchescolováquia ocupada pelos tanques russos, no Brasil subjugado pelos militares. Estudantes mortos: o estudante brasileiro só teve 18 segundos dum plano em que alguém o pranteou, uma moça; o resto foi utilização política. Em Praga, diversamente, muitos choraram a morte do estudante. Houve também estudantes mortos na França: um se jogou no característico Sena. E um perigoso diálogo entre estudantes e operários: embora em planos diferentes (um acima, outro abaixo), a só existência desta conversação perturbava a ordem natural das coisas, asseverava a voz-over. E João não deixa de acenar para a petrificação da rebeldia: após maio de 68, Daniel Cohn-Bendit, o agitador daquele mês, é cooptado pela publicidade duma revista de classe média, que financia uma viagem de exílio dele: a rebeldia também pode ser uma mercadoria.
João Moreira Salles é um artista brasileiro que nasceu num berço economicamente privilegiado. Mas tem uma aguda consciência de sua condição de classe. Esta consciência se reflete na grandeza de seus filmes. No intenso agora, valendo-se desta consciência estética tão lúcida quanto perplexa, é um olhar do século XXI, com todo o desencanto que se acumulou ao longo das décadas, sobre um dos momentos mais desestabilizadores das sociedades humanas durante o século passado, o ano de 1968 e as rebeliões estudantis e trabalhistas cujo centro pode ter sido Paris mas na verdade tinham perdido centros ou líderes em sua anarquia. O que ocorreu depois? A cabeça de João o mostra: como sempre, a anarquia foi embalsamada. Até que ela possa ressurgir, viva, num filme transbordante como este.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br