Singularidades de um Cineasta Português

Singularidades de uma Rapariga Loura se transforma num filme singular, para além do conto

29/05/2018 15:58 Por Eron Duarte Fagundes
Singularidades de um Cineasta Português

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O escritor português Eça de Queirós foi mais conhecido por suas narrativas longas, os romances; sua linguagem em constante subida metafórica e seu olhar enviesadamente irônico para as deformidades da sociedade portuguesa de seu tempo o fizeram um dos autores mais prestigiados de nossa língua. Mas ele escreveu também alguns contos tão admiráveis quanto seus romances e Singularidades de uma rapariga loura (1902), publicado postumamente, é um dos mais estimados.

O cineasta luso Manoel de Oliveira, que já teve sua fase de fascínio pelo ficcionista Camilo Castelo Branco (Camilo foi personagem-relâmpago de Francisca, 1981, e em O dia do desespero, 1992, foi a figura central, e teve seu romance Amor de perdição transposto para uma série televisiva em 1978), agora se debruça sobre o conto de Eça para rodar um filme tão curto quanto esteticamente perfeito. Singularidades de uma rapariga loura (2009), cuja estreia internacional se deu num  Festival de Cinema de Berlim, é uma das muitas obras-primas do genial diretor português; como sempre, haverá quem se aborreça com os longos planos fixos, imóveis, rígidos, semiteatrais com que Oliveira filma suas cenas, voltadas intensamente para uma interioridade plástica; o plano-sequência que abre o filme, mostrando um cobrador dentro dum vagão de trem marcando os bilhetes dos passageiros, se dá ainda durante a apresentação de créditos e é uma destas fixações de imagens com que Oliveira exacerba a tolerância do espectador para com a duração do plano.

E todo Singularidades de uma rapariga loura é feito desta lentidão insistente, aguda. O senso plástico e espiritual do cinema de Oliveira é aparentado daquele do francês Robert Bresson.

(Mas, como falamos em Bresson, pense-se em Singularidades de uma rapariga loura em construção à maneira do que fez o cineasta francês em O processo de Joana d’Arc, de 1961. Tomou os escritos das peças do processo que inquiriu Joana d’Arc como se fosse um original literário, dispôs o texto processual em forma rigorosa e fiel mas buscando naquelas palavras sentidos ocultos que somente o cinema poderia exibir. Oliveira faz algo parecido tanto com a literatura de Eça quanto com o modelo de edificação narrativa de Bresson, refazendo e atualizando um estilo intelectual de filmar que se torna precioso a cada revisão).

Mas há situações singulares e lusitanas em Oliveira. É um cineasta original e num meio, como o cinema, onde os copistas abundam, a existência de um Oliveira pode parecer uma afronta: como se atreve ele a ignorar tanto a tradição cinematográfica? afinal, o cinema não foi inventado ontem... Oliveira é um pouco um inventor do cinema; não é por acaso que ele é um indivíduo centenário que ainda faz cinema.

Ele segue os passos do conto de Eça, modernizando-o, e o resultado é um conto cinematográfico exemplar, uma arquitetura cinematográfica extasiante. Se no conto de Eça o narrador vai contar a estranha história que ouviu de Macário a um ouvinte que é o próprio leitor, ao descer duma diligência, numa estalagem do Minho, no filme de Oliveira vemos Macário num trem a contar a uma interlocutora (vivida pela habitual intérprete de Oliveira, Leonor Silveira) sua própria história. Os interstícios narrativos são preenchidos pelas aparições do interior do trem (o que conta história, Macário, e a mulher que o ouve) e por planos gerais fixos (ora noturnos, ora com os clarões do amanhecer ou do entardecer) do casario onde história de Macário e sua noiva-ladra Luísa se dá. Não há muitas diferenças entre os enredos de Eça e de Oliveira. No fim do filme, como no conto, Macário ruge para Luísa duas frases básicas: “Vai-te!” e “—És uma ladra!”. Seguindo o conto, Singularidades de uma rapariga loura se transforma num filme singular, para além do conto.

Ricardo Trêpa, neto do realizador, vive Macário. A jovem atriz lusitana Catarina Wallenstein, estreando sob Oliveira, interpreta a esquiva Luísa. O ator Luís Miguel Cintra aparece como ele mesmo recitando Alberto Caieiro, um dos heterônimos do poeta português Fernando Pessoa. Diogo Dória é o rígido tio Francisco, que se opõe à flacidez dos amores de Luísa. Ana Paula Miranda é ela mesma, a harpista que toca Arabesco de Claude Debussy no início da narrativa. E assim a história de Macário, o homem que, aos 22 anos, ainda não tinha sentido Vênus, segundo Eça, tem nas mãos de Manoel de Oliveira uma espécie cinematográfica notável. O malogro e a decepção sentimentais de um homem narrados com incrível profundidade.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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