O Lobo da Palavra em Portugues
Comissao das lagrimas torna ao assunto favorito do romancista Antonio Lobo Antunes
Mergulhar nos textos do escritor português António Lobo Antunes é uma dádiva irrecusável para quem, como este observador à distância, nasceu, se criou e nunca deveria ter saído de dentro da prosa em língua portuguesa. Comissão das lágrimas (2011) é mais uma grande aventura verbal deste artista que, como poucos na língua, soube reinventar a maneira de escrever em português.
“Nada a não ser de tempos a tempos um arrepio nas árvores e cada folha uma boca numa linguagem sem relação com as outras, ao princípio faziam cerimónia, hesitavam, pediam desculpa, e a seguir palavras que se destinavam a ela e de que se negava a entender o sentido, há quantos anos me atormentam vocês, não tenho satisfações a dar-vos, larguem-me, isto em criança, em África, e depois em Lisboa, a mãe chegava-se ao armário da cozinha onde guardava os remédios”
Comissão das lágrimas torna ao assunto favorito do romancista. A guerra colonialista em Angola, colônia portuguesa na década de 70. É que Lobo Antunes, tendo servido como médico do exército lusitano nos tempos das lutas na África, está relatando, indiretamente, suas próprias experiências, seus próprios sentimentos. É um petardo de estilo, a sintaxe interrompida, a narrativa interrompida, como um vômito delirante e multifacetado da nossa língua. Um constante exercício de síncope de linguagem.
Pedaços de invenção para um romance que se forma da própria a criação de conjunto. Simone...
“chamas-te Simone, veio —agora sem eu esperar, que tal, Simone como as francesas ricas que ele não conhecera francesas na vida mas há cinema, há revistas, quem não sabe de Paris, uma torre com milhares de cabarés à volta, onde é que a mulher do meu tio desencantou, as socas que a vi sempre de botas e lenço na cabeça de que se escapavam madeixas, cada qual com a sua maneira de ser e o seu projeto próprios, o pai dela morreu com um ancinho no peito e a mãe foi-se embora com o dono do ancinho para outras fragas quaisquer, impingiram-se que javalis, nesse tempo, a trotarem nas furnas, olha aqueles dentes em baixa e as pupilas zangadas, o capitão para o seu marido”
Com Lobo Antunes, o texto primeiro se deslumbra e depois, ipso facto, deslumbra o leitor. Como abrir a cortina de palavras para o espetáculo verbal: o palco.
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br