1984: Um Futuro no Passado
1984 é, provavelmente, o mais amplo e agudo universo duma ficção política futurista
Agora que o ano de 1984, o futuro imaginado pelo escritor inglês George Orwell, em seu romance de antecipação 1984 (1949), já é uma bruma do século passado, podemos aquilatar a força de eterna atualidade das visões do romancista, no fundo porque a natureza humana, ao longo das centúrias, não muda. Somos os mesmos: somos os nossos pais assim nossos filhos nos serão.
Quando apareceram, nos anos 40 do século XX, as alegorias totalitárias inseridas em 1984 foram tidas por narrativa anticomunista, este sentimento velho da Guerra Fria que parecia sepultado depois da queda do Muro de Berlim, e no entanto torna a recrudescer ao aproximarmo-nos da terceira década do milênio, mais particularmente neste nosso arcaico e carcomido Brasil. Como observou outro romancista, Thomas Pynchon, num ensaio mais ou menos recente, esta percepção sobre o livro de Orwell era uma inversão do processo da mente do ficcionista britânico, pois o autor na verdade estava mais além, à esquerda da esquerda, radicalíssimo e anarquista.
Considerado um dos trabalhos literários mais amados no ramo das ciências sociais (hoje se diria: humanas, talvez o epíteto “ciências” nem lhe caiba), como afirmou certa vez um velho professor de economia, sotaque estrangeiro, em meus tempos iniciais de bancos de faculdade, 1984 é, provavelmente, o mais amplo e agudo universo duma ficção política futurista. Nem mesmo o brilhante inglês Aldous Huxley em Admirável mundo novo (1932) chegou ao bloco investigativo preciso e completo de Orwell. Muito menos algumas tentativas mais modernas, como a do americano William Gibson em Neuromancer (1984).
As tramas de submissão do indivíduo a um poder controlador são extraordinariamente montadas pela habilidade de escritor de Orwell. Opondo o pretendido rebelde Winston ao dominador, porta-voz do invisível Grande Irmão, O’Brien, Orwell põe sua máquina da dialética funcionar em palavras que podem levar-nos ao êxtase da compreensão. “O Ódio chegou ao clímax” se diz a certa altura do romance. Os jogos de poder e submissão são feitos de ódio: ontem, hoje e sempre. A natureza humana é a mesma: ela poderia ser controlada pelo humanismo. Mas no mundo emperrado e mecânico do romance de Orwell (que no fundo é o mundo real, apesar da alegoria) o humanismo, ele próprio, é submetido, dirigido. Isto vale para todas as tendências ideológicas, algumas mais perversas, outras menos. A influência de Orwell, particularmente entre sociólogos e antropólogos, é tão grande que certos trechos do antológico ensaio de Vigiar e punir; nascimento da prisão (1975), do francês Michel Foucault, parecem uma adaptação da ficção de Orwell.
Soberbo em vários de seus momentos, criativo amiúde, de ritmo feroz em todas as suas curvas, 1984 é, como pôs na mesa um senhor que me viu a ler o livro no shopping, algo atualíssimo. Lido nos anos 70, relido nos dias de hoje, permanece imbatível.
(eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br