O Mundo e o Cinema Dilacerados Entre o Agreste e o Mar: O Trabalho e o Carnaval
Estou me guardando para quando o carnaval chegar estabelece a ligacao com o passado. O passado do realizador, na infancia
As primeiras imagens de Estou me guardando para quando o carnaval chegar (2019) trazem na faixa sonora a voz do realizador do filme, o pernambucano Marcelo Gomes, que, sob aqueles quadros áridos duma cidadezinha do Nordeste brasileiro, lembra coisas da infância, as andanças com seu pai por aqueles remotos. Assim, a realização se constrói neste paradoxo formal dum documentário em primeira pessoa, o cineasta um pouco de fora um pouco dentro da história que conta, o cinema um pouco só observando, um pouco interferindo na realidade que observa, uma simbiose objetividade-subjetividade que permite, aqui e ali, uma criatividade inesperada. Logo sabemos que o vilarejo nordestino que Marcelo e seu cinema visitam é Toritama, que fica no agreste pernambucano e é famoso por seu comércio de algumas calças fabricadas artesanalmente por seus habitantes; foi por esta cidade que Marcelo e seu pai, ele menino, passaram há tantos anos.
Estou me guardando para quando o carnaval chegar estabelece a ligação com o passado. O passado do realizador, na infância. E também o passado do próprio cinema brasileiro. Marcelo vê o trabalho, faz um estudo cinematográfico do trabalho. Este trabalho é realizado no agreste, à beira do sertão. Ao longo do filme, Marcelo descobre que os moradores, incansáveis trabalhadores, anseiam pelo carnaval. Onde? Na praia. Nos dias de folia todos vão para o mar, nem que seja preciso vender alguns pertences da casa, que depois eles readquirem trabalhando. Em quase todo o filme são as imagens do trabalho dos documentados que aparecem para o espectador. Lá pelo fim, vendo a dificuldade de alguns de conseguirem dinheiro para o deslocamento até o mar no carnaval, Marcelo negocia com eles: leva-os, mas em troca quer que eles mandem os filmes do carnaval. Estas imagens do carnaval, soltas, desabusadas, vão estar na parte final do filme. Pode-se dizer: o cinema negocia com a realidade. Pode-se dizer: o sertão de Glauber Rocha volta agora convertido em agreste e vai virar mar no carnaval que fecha o filme. Quer dizer: a ligação entre presente (Marcelo) e passado (Glauber) se dá também pelo cinema.
Num determinado momento de seu filme Marcelo se põe inquieto diante da monotonia dos planos (plano: elemento de composição da linguagem cinematográfica) dos trabalhos. Diz a voz-over que os aspectos reiterativos da ação-relação homem, peça e máquina o angustiam. Tenta mudar o ângulo do plano: a angústia ainda está ali. Tenta inserir a música na imagem: não se descola a angústia. Marcelo parece necessitar daqueles seres, são eles que poderão ajudá-lo a encontrar o passado sempre presente, mas os gestos deles parecem também dilacerá-lo, entre o mundo e o cinema. O trabalho é que importa; mas o carnaval está ali, um apêndice estranho, incômodo, necessário.
O título do filme, sabemos desde o início, vem de uma canção de Chico Buarque de Holanda. Quando ouvimos a canção balançar a imagem, é João Gilberto, o grande músico falecido em seis de julho de 2019, quem surge no cérebro e no ouvido do observador. Será mesmo João? Será Chico, que mimetizou tão bem um de seus mestres? Os créditos finais nos esclarecem: o grupo O grivo é quem canta “Estou me guardando para quando o carnaval chegar”. E o sabemos: o faz ao modo de João Gilberto. Curiosa coincidência destes tempos obtusos para um autêntico filme-canção extraído das asperezas nordestinas.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br