A Literatura Feita Cinema
Os papeis de Aspern, o filme, eh uma bela porta de entrada para estas novas instancias narrativas em que Landais nos mergulha
O diretor francês Julien Landais inicia sua filmografia numa refinada produção de feição internacional extraída da obra mais que exigente do romancista anglo-americano Henry James. Os papéis de Aspern (The Aspern papers; 2018) filma com rigor os diálogos sob medida de James, em momento algum escondendo suas origens literárias, mas adotando formas hieráticas nas composições dos intérpretes e na manipulação dos cenários, especialmente no modo como estes elementos deslizam pela plasticidade dos quadros e dos movimentos de câmara. Não é por acaso que um dos produtores do filme é o americano James Ivory, que adaptou com brilho dois romances de James, Os europeus (1979) e Os bostonianos (1984). Mas Landais, conquanto se valha duma textura aparentada com a de Ivory, envereda algumas vezes por um lirismo onírico transcendental, em sequências ora eróticas (e homoeróticas), ora próximas da fantasmagoria dos achados do escritor.
O romance de James é de 1888. A história que ele ali conta passa-se, pois, no fim do século XIX. O narrador é um obcecado pesquisador literário que quer ter acesso a uns papéis deixados por um poeta de sua admiração, Jeffrey Aspern (o próprio James diz que a personagem se inspirou na personalidade de Lord Byron), para isto acerca-se da amante do poeta (na atualidade, uma senhora muito velha) e, no casarão em que ela vive, depara também com uma dama de meia-idade, sobrinha da anciã. Em determinados momentos, ao alternar os diálogos do pesquisador com as senhoras, parece sugerir a vampirização da velha pela nova, tão grande é a proximidade dos conteúdos das conversas entre o homem e cada uma das figuras femininas com quem ele contracena. O narrador de James ressurge na voz-over do filme de Landais, costurando a densa sinuosidade narrativa da realização cinematográfica.
A habilidade surpreendente de Landais para um estreante, estende-se para a direção de atores. Vanessa Redgrave é a dama cênica de sempre; Joely Richardson, filha de Vanessa na vida real, coaduna seu temperamento com a velha intérprete. E Jonathan Rhys-Meyers, conquanto às vezes rígido demais em seus controles de cena, logra assumir a literatura e a plástica hierática que, por mais duras e indigestas que pareçam, dão o sabor autenticamente novo e originalmente cinematográfico a este Os papéis de Aspern.
Após a morte da tia, a sobrinha queima os papéis: foi a falecida quem lhe pediu. A obsessão do narrador perde-se com a perda dos papéis. No fim do livro, o narrador alude “à perda dos preciosos papéis”. O filme é feito, todavia, dos encontros: o pesquisador com as senhoras, o pesquisador quase com os papéis. O ato da mulher ateando fogo aos manuscritos parece também um encontro, ainda que com as cinzas. “Não apenas lembro com facilidade, mas recordo com grande prazer, o primeiro impulso dado à ideia de Os papéis de Aspern”, revela Henry James no prefácio a seu livro. Landais, o diretor do filme, que impulso inicial teria tido ele? Seria somente de seu mentor, James Ivory? Ou seus achados formais e buscas temáticas já estariam em algum baú dentro de sua estética de filmar? Os papéis de Aspern, o filme, é uma bela porta de entrada para estas novas instâncias narrativas em que Landais nos mergulha.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br