Concebendo um Ritmo Cinemetografico
Pode-se afirmar que Um condenado a morte escapou eh um falso filme de suspense
É com Um condenado à morte escapou (Un condamné à mort s’est echappé; 1956) que o cineasta francês Robert Bresson lançou as bases formais de seu cinema. Embora tenha feito antes obras-primas como As damas do bosque de Bolonha (1944) e Diário de um padre (1950), é na trajetória minuciosa do condenado à morte pelos carcereiros nazistas, uma trajetória de busca da liberdade, que Bresson topa os elementos mais adequados para construir suas imagens despojadas, sua secura e rispidez de montagem e impor a seus atores interpretações desataviadas —em suma, uma verdadeira nudez estética.
Juntamente com O processo de Joana d’Arc (1962), é a mais despida das obras de Bresson, que se despem com uma naturalidade impressionante. Os cenários áridos e vazios e as paredes brancas e inertes (retomadas estas paredes pelo italiano Michelangelo Antonioni em sua trilogia da incomunicabilidade) vão determinar aquele ritmo interno próprio dos filmes de Bresson. Desde o início Bresson canta a ausência de artifícios de seu filme, numa busca de um realismo todo seu, singular, quando, num letreiro, diz que que a história contada é real e sem adornos; foi aí, em Um condenado à morte escapou, que Bresson praticou autenticamente sua teoria da verdade cinematográfica em filme: o ator François Leterrier, que depois se tornaria diretor, é varado pela minúcia da direção de Bresson; o rigor de movimentos do intérprete se casa com alguma ausência de intenção e com a espontaneidade que sobrevém no caminho da fuga do protagonista; Leterrier é levado a uma sutil extenuação do desempenho pela mão severa de Bresson.
(A voz de Leterrier, em off, costura monocordicamente a junção de imagens: uma narrativa em primeira pessoa que é um dos poucos artifícios de Um condenado à morte escapou; o outro artifício é a utilização, esparsa, da música de Mozart (em A grande testemunha, 1966, a voz musical de Schubert invadia a tela). O cinema de Bresson está à altura dos grandes mestres da música.)
Como não poderia deixar de ser, em se tratando de um artista do espírito, a referência religiosa aparece. Depois do título, Bresson adiciona outra opção de título para seu filme: “O vento leva para onde se quer.” É uma citação bíblica, referida depois ao longo da película: uma frase de Jesus a Nicodemo. Pois bem: Um condenado à morte escapou é uma reflexão ética e estética sobre a liberdade ainda que estejamos aprisionados; o vento nos leva para qualquer lugar, isto é liberdade. Há um filme do iraniano Abbas Kiarostami, um dos descendentes estéticos de Bresson, que é justamente chamado O vento nos levará. Em sua época, Um condenado à morte escapou foi saudado por topar a alma do cinema, o movimento interior cinematográfico bressoniano; cinquenta anos depois, continua um filme inatingível, secreto, cheio de uma simplicidade cujo âmago nunca se atinge; quase tudo o que o cinema inventou depois de Um condenado à morte escapou corre o risco de perder o sentido diante deste retorno ao cinematógrafo que a obra-prima de Bresson representa.
Pode-se afirmar que Um condenado à morte escapou é um falso filme de suspense. Num filme policial de gênero a história do protagonista de Bresson se adornaria da seguinte angústia do espectador: conseguirá o condenado à morte ser bem-sucedido em sua tentativa de fuga? Esta indagação é abolida por Bresson desde o título: o condenado à morte vai mesmo fugir. Deslocado o suspense, a concentração de Bresson está em exercitar a montagem interior que quer captar a interioridade humana. Disse bem o crítico brasileiro Paulo Emílio Sales Gomes ao diferenciar a interioridade temporal de Bresson da interioridade espacial praticada muitas vezes pelo cinema: em Bresson o espaço é quase eliminado e sobram as iluminações da alma, convertidas em realidade plástica; ou seja, o espaço foge para retornar como tempo sem deixar de ser o espaço (meio plástico) abarcado pela visão do espectador.
Descalços, o protagonista e seu companheiro de cela vão executar o gesto final do filme, simbolizando tanto o cinema descarnado (descalço) de Bresson quanto uma vida de penitências (igualmente descalça, sem presunção). As personagens esqueceram os sapatos lá em cima quando começaram a descer pela corda, revela a voz off de Leterrier enquanto vemos os atores caminharem diante da câmara sem os calçados que haviam retirado para não fazer ruído em sua fuga; Bresson retirou os sapatos do filme na sala de montagem, Um condenado à morte escapou é um filme praticamente sem ruídos, está descalço; diz-se que o cineasta rodou 60000 metros de película para aproveitar 6000 metros, como se vê um suado exercício de carpintaria. Se não fosse a existência de um Jean Renoir, se poderia dizer que não houve diretor de cinema francês mais completo que Bresson.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br