Um Poema da Vida Real

O homem que colecionava manhas (2004), romance do escritor gaucho Liberato Vieira da Cunha, esta em busca do ritmo interior de seu protagonista

29/06/2020 14:25 Por Eron Duarte Fagundes
Um Poema da Vida Real

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Um homem senta diante duma janela e lança sua teleobjetiva para o mundo. O dia-a-dia de seu universo está no olhar deste homem que guia o olhar do leitor por uma velha cidade da província. Construído como um diário íntimo do protagonista, O homem que colecionava manhãs (2004), romance do escritor gaúcho Liberato Vieira da Cunha, está em busca do ritmo interior de seu protagonista, assemelhando-se neste esforço à estrutura de livros como Memorial de Aires (1908), de Machado de Assis, e O amanuense Belmiro (1936), de Cyro dos Anjos.

Quem conheceu a generosidade da visão de mundo de Liberato em suas crônicas semanais para o jornal durante vários anos, terá, ao deparar com sua narrativa longa, uma confirmação e uma surpresa. Confirma-se aqui o escritor pleno de sensibilidade para enxergar o cotidiano, o ficcionista que sabe valer-se das sintaxes da língua para expressar os diversos sentimentos humanos que pululam por aí; a surpresa vem de que, despindo-se dos pudores linguísticos exigidos pela moral jornalística, Liberato torna o erotismo que lateja em suas crônicas, cheias de damas belas e misteriosas, mais carnal e avassalador. Se a menina de cabaré Shirley e a simplória Gisa representam aspectos mais triviais da persona feminina, a figura de Victoria, conquanto materializada em carne e sexo, tem a transfiguração das senhoras esquivas e perplexas que de quando em quando cruzam pela imaginação do cronista Liberato.

“E fez esse reconhecimento com seus lábios, suavemente, sem pressa, e sem pressa me percorriam suas mãos e deslizava por mim sua pele. E ora sua boca que buscava meu pênis e ora era toda ela que me buscava, a amazona que me galgava. E logo era eu que imergia em sua carne atravessando cada porta e rompendo cada limite da entrega. E por todos os meios e modos que jamais foram concebidos para que um homem se desse a uma mulher e uma mulher possuísse um homem, fomos tão completamente um do outro que nela orbitamos como dois planetas gêmeos e indivisos desde a aurora da Criação.”

E aduz no dia seguinte:

“Tudo isso foi ontem, pois amanhecemos juntos.

Tudo isso foi há séculos, pois Victoria partiu.”

Um pouco de realidade, um pouco de poesia é o que informa o jeito ficcional de Liberato. O escritor cearense José de Alencar, num contexto bastante diverso, dizia do gênero romance, “como eu agora o admirava, poema da vida real” (Como e por que sou romancista, documento publicado postumamente em 1893 por seu filho Mário Alencar). A Liberato, dentro duma perspectiva atual, cabe o epíteto de poeta da vida real como romancista: não me lembra que algum outro ficcionista brasileiro de hoje saiba varrer o cotidiano de gestos e sentimentos elevando-o da trivialidade para a poesia, para o lirismo, de maneira tão transparente, tão objetiva.

Sem embargo de apresentar a visão lírica de um homem lançada para o mundo, O homem que colecionava manhãs, cujas notas de diário vão de 25 de maio de 1945 a 6 de dezembro do dito ano, não deixa de ser uma precisa e apaixonante crônica da Porto Alegre dos anos 40, sobrando inclusive uma anotação política para a queda do presidente Getúlio Vargas em 29 de outubro de 1945.

Uma das curiosidades do romance é que o protagonista tem ofício escrever cartas encomendadas por pessoas que não sabem alinhavar frases no papel. Muitos dos envolvimentos da personagem, movendo o drama romanesco como num jogo, vem desta atividade de Alberto Lins da Nave, a personagem-narradora cujo diário é convertido em romance. De certa forma, compor orações no lugar daqueles que não sabem escrever, pode ser tido por uma metáfora da própria função do romancista: não estaria o romancista escrevendo no lugar do leitor, incapaz de redigir romances? o melhor romancista não seria aquele que pega da pena como se o próprio leitor dela estivesse usando?

O recurso narrativo da personagem que faz textos para outrem pode não ser exclusividade de Liberato Vieira da Cunha; mas é muito pessoal o jeito com que o autor usa o método para entrelaçar os liames dramáticos e produzir o que me parece mais importante neste romance: a capacidade de criar um ritmo íntimo de linguagem e narração que vai revelar como se comporta por dentro uma personagem. Neste aspecto o capítulo final é deslumbrante.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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