A Nova Seducao da Carne
A criatividade do cineasta Julio Bressane eh exercitada a partir de elementos cenicos raros e confinados em Seducao da carne (2018)
A criatividade do cineasta Júlio Bressane é exercitada a partir de elementos cênicos raros e confinados em Sedução da carne (2018). Diante das câmaras, somente a intérprete Mariana Lima e um papagaio, num monólogo de feição literária e teatral, misturando cerebralismo e aspectos da linguagem experimental do cinema; o despojamento refinado dos cenários atingem neste filme o maior rigor a que Bressane chegou em sua trajetória, e trata-se dum rigor formal que exaspera reflexivamente a cabeça do observador.
Desde seu título, o filme de Bressane traz o peso cultural das citações. Sabemos que “sedução da carne” foi o título brasileiro para Senso (1955), uma das obras-primas do italiano Luchino Visconti. Bressane não tem os pudores classicistas de Visconti; mas ombreia com ele nas afeições pelo refinamento cultural, mais tropicalista no diretor brasileiro, mais mediterrâneo no realizador peninsular. Demais, a sedução carnal a que alude a meditação de Bressane, embora não descarte a volúpia sexual, apresenta outra questão da carne, a espécie humana como carnívora, uma predadora, matadora de outros animais de maneira inescrupulosa pelo planeta e pelos tempos afora. Em certa cena aparece, deitado no chão, o corpo nu de Mariana preenchido, como se fossem recheios de um bolo, por nacos de carnes de bichos mortos; a carne viva e a carne morta contracenam espantosamente neste achado estético de imagem do cineasta, mas (e todavia) a carne morta é animizada pela metáfora cruel e ameaçadora de Bressane, os elementos aparentemente mortos se movem no quadro cinematográfico áspero. Há um outro momento de crueldade surrealista (Buñuel? Pasolini?) em que a câmara enquadra o traseiro de Mariana, que na antinarrativa do filme vive uma viúva em delírios verbais com seu papagaio, e este traseiro duma mulher que no outro plano estava coberta de pedaços de carne, começa a mexer-se, adquirir volume e finalmente expele uma carne morta por entre as pernas, uma forma curiosa e voluptuosa do excremento que ainda é na imagem um pré-excremento: está fora do corpo, mas é um pouco como se ainda estivesse dentro deste corpo que vemos mover-se para expelir a carne morta, desnecessária.
De citação em citação, como em no suíço Jean-Luc Godard, o espectador brasileiro mais atento vai deparar, na boca da personagem de Mariana, a alusão ao escritor brasileiro João Ribeiro, hoje esquecido e que ao público atual pareça talvez bastante anacrônico por intenções e estilo. Bressane, em seu filme, por sua personagem, define João como alguém que redescobriu um ritmo da língua portuguesa, um homem das palavras atento aos arcaísmos mas moderno. Estaria Bressane (o homem da imagem) buscando uma associação (ou um paralelo) com João (o homem da escrita)? Para quem acompanha o cinema de Bressane ao longo das décadas, sabemo-lo desde sempre, que o cineasta presta atenção nos fenômenos visuais arcaizantes ao mesmo tempo em que moderniza suas articulações linguísticas.
A crítica social e antropológica de Sedução da carne é transmetafísica: atravessa porões da alma. A habilidade específica de Bressane transforma-se numa autêntica luz cinematográfica, que agora em seu novo filme exibe uma energia plástica desestruturante. Um esplendor culto e estético que permite ao espectador sarcasmos devastadores, para além da contemporaneidade de seus assuntos. Vendo Sedução da carne, que usa intensamente nos primeiros movimentos da narrativa imagens naturais do mar, dos morros íngremes, da selvageria (a selva, o habitat), nos vem à cabeça aquela gargalhada a que aludia Jean-Claude Bernardet sobre uma antiga sessão de cinema dos anos 60 em que ele, o crítico, e Joaquim Pedro de Andrade, diretor de cinema e acompanhante de Bernardet então, não conseguiam romper uma gargalhada que emanava da visão de um filme (agora velho) de Bressane, O anjo nasceu (1969). A gargalhada retorna. Sedução da carne é a gargalhada crua de um artista puro e impuro. Depressão e euforia, como anotava Bernardet, nos informam dos impasses da escrita de Júlio Bressane: a impotência da personagem de Mariana é igualmente uma redenção do observador, ambos isolados e impotentes, ela no cenário de sua casa, o assistente na sala escura em que se projeta o filme de Bressane.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br