A Estrada Brasileira

Acqua movie (2019), filme dirigido pelo pernambucano Lirio Ferreira, propoe uma reflexao no p?rtico das questoes brasileiras mais urgentes da atualidade

28/06/2021 02:32 Por Eron Duarte Fagundes
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Sob o formato de um filme de estrada, um pouco herança dos antigos filmes do alemão Wim Wenders mas adaptada à peculiar atmosfera do Nordeste brasileiro, com sua luz esbatida e suas asperezas dos cenários naturais, Acqua movie (2019), filme dirigido pelo pernambucano Lírio Ferreira, propõe uma reflexão no pórtico das questões brasileiras mais urgentes da atualidade. De um lado, a constante destruição da civilização indígena nos remotos do país; de outro o cinismo político observado pela inteligência nacional de maneira quase impotente. No centro da ação, uma documentarista, Duda, e seu filho Cícero, uns dez anos de idade; a súbita morte do pai do menino (enquanto tomava banho, caiu fulminado por um enfarte, cena descrita numa das sequências iniciais da narrativa) joga mãe e filho rumo do Nordeste, a pequena cidade de Rocha, saídos de São Paulo, para jogar as cinzas do morto no rio São Francisco, suposto desejo final do falecido; o encontro com os arcaísmos sociais da família do ex-marido morto não é dos mais amistosos, trazendo dentro de si uma desavença inicial da mãe com seu filho. A bordo de um carro e depois no seio da esquisita família do morto, Duda e Cícero ensaiam uma espécie de descobrimento do país e também de si mesmos e de suas afeições, algumas subterrâneas; e o realizador logra expor com grande brilho formal estas tensões maternas e filiais.

Os primeiros movimentos do filme mostram imagens dum caudal de águas enquanto uma voz diz, numa língua indígena, um texto entre o mítico e o visceral. Depois disto, a cena cai no interior duma casa onde um homem reclama duma mulher, ao telefone, sobre o abandono familiar em nome da profissão, especialmente o abandono do filho; este filho, um menino, está em torno deste pai, à hora de recolher. Na cena seguinte, o corte para um homem caído no banheiro, enquanto a água do chuveiro lhe desce pelo corpo; o pai faleceu, a mãe retorna para o enterro e para cuidar do filho. Discutem (a primeira frase do garoto para a mãe que ouvimos é “eu te odeio”), ele quer ir ao encontro da pequena cidade dos parentes do pai, ela rejeita. Mas na sequência que vem, estão na estrada dentro dum carro, e, pelo diálogo, descobrimos que já rodaram, desde São Paulo, quase três mil quilômetros; estão, pois, à beira do Nordeste, íngreme e seco. No caminho, numa parada, enquanto a mãe se entretém com os índios, o menino vê um bode comer papel à beira da estrada; depois, quando seu tio-avô, na mesa, descreve como se mata o bicho e depois o limpam para a refeição, o menino faz a pergunta que não entendem, sobre o papel, tira-se também o papel. Descontração e rigor informam o andamento narrativo de Acqua movie.

Alessandra Negrini, na pele de Duda, vaga por ambientações variadas, assim como o fazia em O abismo prateado (2011), do cearense Karim Aïnouz, onde, num aeroporto, ela topava um pai e sua filha. Em Acqua movie é ela quem carrega o filho para cima e para baixo: a despeito de seu trabalho na causa indígena. Também é de se destacar a nova aparição cinematográfica da atriz Marcélia Cartaxo, a extraordinária intérprete de A hora da estrela (1985), de Suzana Amaral, e Pacarrete (2019), de Allan Debbertron. No elenco de participações especiais, vemos os diretores Edgard Navarro e Claudio Assis.

Acqua movie tem às vezes a volúpia do caudal de águas do São Francisco. Mas é acima de tudo um dedo de apontamento das raízes antropológicas do Brasil: de onde viemos e de onde não lograremos sair sem processos dolorosos de construção.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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