As Primeiras Palavras da Criacao de um Mundo

Poncia Viv?ncio (2003), a primeira obra em prosa de Conceicao Evaristo, autora brasileira antes somente dedicada a poesia

12/07/2021 03:06 Por Eron Duarte Fagundes
As Primeiras Palavras da Criacao de um Mundo

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É pela inserção do insólito na simplicidade que começa o romance (apesar de sua pouca extensão, a narrativa parece ter mais a estrutura de amplitude dramática do romance  que as anotações minúsculas duma novela) Ponciá Vivêncio (2003), a primeira obra em prosa de Conceição Evaristo, autora brasileira antes somente dedicada à poesia. Já no primeiro gesto narrativo, damos com a personagem central. E neste primeiro gesto, tão estudado quanto feliz em seu achado, o romance aponta já para uma definição profunda da criatura. Lemos: “Quando Ponciá Vivêncio viu o arco-íris no céu, sentiu um calafrio. Recordou o medo que tivera durante toda a infância. Diziam que menina que passasse por debaixo do arco-íris no céu virava menino. Ela ia buscar o barco na beira do rio e lá estava a cobra celeste bebendo água. Como passar para o outro lado?” Nas palavras aparecidas na página, as imagens são claras: a menina, o arco-íris lá em cima, o reflexo do fenômeno celeste no rio, a necessidade da menina de passar por cima do reflexo (ou debaixo do arco-íris no céu), a lenda ancestral envolvendo transformação, sexo, medo. As palavras, nestes movimentos romanescos iniciais, pingam como se fosse uma incisão: precisão vocabular e rigor sintático, como se o texto literário estivesse fazendo uma cirurgia na realidade.

Todo o romance é depois construído com a textura das orações iniciais: rigor, despojamento, sim, mas ali, na simplicidade feita de insólitos, a escritora inevitavelmente traz para sua linguagem e para a nervura poética de suas origens. Ponciá Vivêncio não deixa de ser um poema em romance; um belo canto de aldeia que parece aqui e ali ter suas breves explosões. Coisas de um devastar íntimo obtido com a arte de romancista de Conceição Evaristo. Suas formas precisas e sem arroubos de expor as frases encontram, numa espécie de achado que não se sabe bem de onde vem, e por isso se pode socorrer à mitologia da escrita e falar em sensibilidade particular, constroem, em Ponciá Vivêncio, um universo à parte dentro da literatura brasileira: a narrativa adota uma instância estética que se situa entre a vivência áspera da personagem e os aspectos lendários desta vivência, evocando um pouco da magia de certos contos orientais medievais. Mas é algo bem brasileiro, bem ligado à etnia essencial que produz a arte literária por aqui.

Ponciá Vivêncio acompanha basicamente a formação de sua figura central, uma mulher negra que foge da roça para a cidade em busca de outras iluminações mas acaba retornando à mítica herança de seu avô Vivêncio. Ponciá Vivêncio é uma das grandes personagens de nossa literatura: permanente e profunda como raras vezes. A certa altura o romance envereda por outras vozes perdidas, o irmão de Ponciá, Luandi, sua mãe, Maria Vivêncio. Mas o faz para tornar a Ponciá, seus dilemas, suas perplexidades, suas obscuridades ocultadas por seus gestos transparentes. Um dos choques do aprendizado de Ponciá é descobrir o acento agudo em seu nome: “E era tão doloroso quando grafava o acento. Era como se estivesse lançando sobre si mesmo uma lâmina afiada a torturar-lhe o corpo.” Neste novo gesto narrativo, Conceição Evaristo toca no terreno da importância da linguagem na construção da introspecção romanesca.

Aí se deve ouvir o que diz a escritora à margem de sua literatura. Uma entrevista. Dada ao jornalista Juremir Machado e publicada em 10.04.21 no Caderno de Sábado do jornal Correio do Povo. Refletindo sobre os aspectos racistas da edificação da personagem dum negro em São Bernardo (1934), de Graciliano Ramos, Conceição revela todavia seu amor ao texto do escritor alagoano. E dá as pistas deste amor: “Gosto muito dessa obra. Nela, fica explícita o papel da escrita, essa introspecção do sujeito que escreve. A escrita pede uma introspecção do sujeito que escreve.” Lendo Ponciá Vivêncio, senti algo próximo do rigoroso martelar verbal de minhas leituras de Graciliano em minha adolescência; lendo o romance de Conceição Evaristo, aspectos da ficção rural de São Bernardo surgiram a mim como leitor, assim como os movimentos do soldado negro em Ponciá Vivêncio traziam ecos do soldado amarelo de Vidas secas (1938), tanto o texto esquivo de Graciliano quanto as imagens desconfiadas do filme de Nelson Pereira dos Santos (1963) para com o embate de movimentos entre o soldado amarelo e o retirante Fabiano. Mas Ponciá Vivêncio subverte, com o fundamento lírico de Conceição, a Graciliano e a toda a formulação romanesca brasileira estabelecida na década de 30 do século XX. Desde as frases iniciais, o romance impõe as primeiras palavras da criação de um mundo: o mundo de Conceição Evaristo.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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