A Filosofia no Brasil

Se não é autoajuda, que é mesmo um livro como Ser feliz (vamos ficar com seu codinome, as duas primeiras palavras do longo título)? É um ensaio, uma filosofia brasileira

07/03/2019 23:23 Por Eron Duarte Fagundes
A Filosofia no Brasil

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No lançamento do livro “Ser feliz” no Brique da Redenção, em Porto Alegre, em 2018

 

Numa antiga meditação incluída em seu clássico esquecido Os mortos de sobrecasaca (1963) o crítico literário brasileiro Álvaro Lins anotou: “Nunca se explicará com suficiente exatidão o que determina a ausência de um verdadeiro filósofo no Brasil.” A filosofia é compatível com o tropicalismo brasileiro? Já se disse também que a literatura brasileira jamais produziria algo tão sofisticado quanto a obra do francês Marcel Proust porque nossa sociedade não exibe os recursos intelectuais, sociais e estéticos da sociedade francesa. Ora, pois: perplexos.

Diante do cadáver de Álvaro (falecido em 1970, aos 57 anos de idade), este comentarista gostaria de apresentar um escritor brasileiro do século XXI: Juremir Machado da Silva, atualmente com 57 anos. Ele vem de publicar Ser feliz é tudo o que se quer (ideias sobre o bem viver) Filosofia para ler no parque, no ônibus, na cama, na rede (2019). É um título que não escapa a uma certa tendência barroca de Juremir: a linguagem que se estica para meditar, o texto encompridado. Mas é também um título de simplicidade e transparência, de dizer as coisas sem rebuços: uma busca que o escritor e intelectual traz de sua constância jornalística, no jornal impresso, na internet, na rádio especialmente (rádio e oralidade). E traz uma pegadinha para o leitor de pouca intimidade com a filosofia: faz que é uma receita de autoajuda, para depois puxar este setor de leitores para o mundo dos filósofos e mostrar que a filosofia, como a crase, não foi inventada para humilhar ninguém, ela é parte mesmo de nossa natureza.

Se não é autoajuda, que é mesmo um livro como Ser feliz (vamos ficar com seu codinome, as duas primeiras palavras do longo título)? É um ensaio, uma filosofia brasileira. Daí a necessidade de ressuscitar um crítico como Álvaro Lins. Na verdade, a estrutura de composição de Ser feliz é feita de vários pequenos ensaios em torno de alguns pensadores, da Antiguidade aos contemporâneos; mais que tudo, são os universos particulares destes pensadores que parecem interessar a Juremir como formação de um pensamento próprio onde se vai estabelecendo uma espécie de filosofia brasileira; os pequenos ensaios foram experimentados originalmente como crônicas no jornal Correio do Povo, de Porto Alegre. Para dar unidade a estes ensaios desligados, é posta uma questão filosófica tida como essencial. “Ousemos: o principal tema da filosofia é a felicidade.” O francês Edgar Morin, que é uma das personagens de Ser feliz e é o mais completo pensador do século XX, escreveu um opúsculo chamado Meus filósofos (2011), onde alargava o conceito de filósofo e incluía gente como Jesus, Dostoievski e Beethoven; Jean-Claude Bernardet, pela boca de sua autopersonagem na novela A doença, uma experiência (1996), aponta o cineasta francês Alain Resnais como seu filósofo favorito; este articulista tem no diretor de cinema germânico Alexander Kluge um de seus cumes na filosofia no século XX. Juremir não faz isto: permanece na conceituação formal clássica do que seja um filósofo, do chinês Confúcio ao francês Gilles Lipovetsky.

Ser feliz é todo ele recheado de êxtases de raciocínio. Vou deter-me no trecho que mais me encantou. Aquele que trata do britânico Jeremy Bentham, o filósofo utilitarista que foi assunto de um dos mais belos artigos sobre a felicidade que li: “Pode-se definir e medir a felicidade?”, escrito pelo francês Luc Ferry e publicado no jornal Le Figaro em 26 de julho de 2012 (eu o li em francês, em Paris mesmo, numas férias encantatórias e naturalmente felizes); e Ferry chega a ter uma breve citação num dos ensaios de Ser feliz. De onde vem o fascínio do trecho “Jeremy Bentham, felicidade se calcula”? Deste cruzamento intelectual tão refinado quanto transparente que Juremir faz como ninguém. Ele começa com uma frase simples, adrede ingênua: “A felicidade individual pode ser útil à sociedade?” Depois passa ao romance Rudine (1856), onde o russo Ivan Turguêniev opõe o rude Pigassof ao sofisticado Rudine, e Juremir usa com raro senso de atualidade aquela exclamação de Pigassof, apatetado diante das elaborações de Rudine, em que diz que prefere procurar os imbecis (ou o Brasil de nossos dias...). Depois chega a Bentham, e abre a hipótese de que o inglês possa ter influenciado a construção da literatura do russo. As circunvoluções do raciocínio de Juremir em torno de Pigassof, Rudine, Turguêniev, Bentham são tão provocativamente estapafúrdias quanto sensivelmente criativas: “Como ninguém é perfeito, Bentham defendia uma democracia censitária, com direito a voto reservado aos detentores de certa renda. Era inteligente demais para ser aceito com facilidade. Muita gente, reencarnando o colérico Pigassof, prefere ir ver os imbecis.” Juremir cria, por aí, a verdadeira filosofia brasileira. E torno a Álvaro: não há nenhuma razão para não se ter, entre nós, um filósofo e um sistema filosófico. Esta filosofia deve ter a humildade de utilizar referências “pop”: “Nas formulações teóricas e visões de mundo de Paris VIII, Marx, Nietzsche e Freud formavam o trio MNF, assim como, mais tarde, Messi, Suárez e Neymar formariam o trio MSN no futebol estonteante do Barcelona.” Pode-se partir de algo que interessa a todos: ser feliz. Mesmo que alguns caminhos ali percorridos não sejam tão fáceis, em suas referências, para a maioria. “Ser feliz é tudo que se quer. Kierkegaard não podia sê-lo.” Então: alguns sombrios europeus teriam capacidade de entender um filósofo brasileiro? Num opúsculo recente sobre filosofia, Diferença e descobrimento o que é o imaginário (2017), Juremir alude à hipótese do excedente de significação, algo como uma sobra de sentido. A felicidade à brasileira, interpretada à luz de leituras estrangeiras, seria o que sobrou de nossos significados e agora transformada nestes ensaios extasiantes e que são no fundo um único ensaio em Ser feliz? No fundo, lá no extremo fundo, o que assoma da leitura de Ser feliz é a junção de duas grandes forças da personalidade literária de Juremir Machado da Silva: sua força de leitor e sua força de escritor, a de interpretar e a de escrever, a interpretação um pouco como um excedente do que se escreve.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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