A Filosofia no Brasil
Se não é autoajuda, que é mesmo um livro como Ser feliz (vamos ficar com seu codinome, as duas primeiras palavras do longo título)? É um ensaio, uma filosofia brasileira
No lançamento do livro “Ser feliz” no Brique da Redenção, em Porto Alegre, em 2018
Numa antiga meditação incluída em seu clássico esquecido Os mortos de sobrecasaca (1963) o crítico literário brasileiro Álvaro Lins anotou: “Nunca se explicará com suficiente exatidão o que determina a ausência de um verdadeiro filósofo no Brasil.” A filosofia é compatível com o tropicalismo brasileiro? Já se disse também que a literatura brasileira jamais produziria algo tão sofisticado quanto a obra do francês Marcel Proust porque nossa sociedade não exibe os recursos intelectuais, sociais e estéticos da sociedade francesa. Ora, pois: perplexos.
Diante do cadáver de Álvaro (falecido em 1970, aos 57 anos de idade), este comentarista gostaria de apresentar um escritor brasileiro do século XXI: Juremir Machado da Silva, atualmente com 57 anos. Ele vem de publicar Ser feliz é tudo o que se quer (ideias sobre o bem viver) Filosofia para ler no parque, no ônibus, na cama, na rede (2019). É um título que não escapa a uma certa tendência barroca de Juremir: a linguagem que se estica para meditar, o texto encompridado. Mas é também um título de simplicidade e transparência, de dizer as coisas sem rebuços: uma busca que o escritor e intelectual traz de sua constância jornalística, no jornal impresso, na internet, na rádio especialmente (rádio e oralidade). E traz uma pegadinha para o leitor de pouca intimidade com a filosofia: faz que é uma receita de autoajuda, para depois puxar este setor de leitores para o mundo dos filósofos e mostrar que a filosofia, como a crase, não foi inventada para humilhar ninguém, ela é parte mesmo de nossa natureza.
Se não é autoajuda, que é mesmo um livro como Ser feliz (vamos ficar com seu codinome, as duas primeiras palavras do longo título)? É um ensaio, uma filosofia brasileira. Daí a necessidade de ressuscitar um crítico como Álvaro Lins. Na verdade, a estrutura de composição de Ser feliz é feita de vários pequenos ensaios em torno de alguns pensadores, da Antiguidade aos contemporâneos; mais que tudo, são os universos particulares destes pensadores que parecem interessar a Juremir como formação de um pensamento próprio onde se vai estabelecendo uma espécie de filosofia brasileira; os pequenos ensaios foram experimentados originalmente como crônicas no jornal Correio do Povo, de Porto Alegre. Para dar unidade a estes ensaios desligados, é posta uma questão filosófica tida como essencial. “Ousemos: o principal tema da filosofia é a felicidade.” O francês Edgar Morin, que é uma das personagens de Ser feliz e é o mais completo pensador do século XX, escreveu um opúsculo chamado Meus filósofos (2011), onde alargava o conceito de filósofo e incluía gente como Jesus, Dostoievski e Beethoven; Jean-Claude Bernardet, pela boca de sua autopersonagem na novela A doença, uma experiência (1996), aponta o cineasta francês Alain Resnais como seu filósofo favorito; este articulista tem no diretor de cinema germânico Alexander Kluge um de seus cumes na filosofia no século XX. Juremir não faz isto: permanece na conceituação formal clássica do que seja um filósofo, do chinês Confúcio ao francês Gilles Lipovetsky.
Ser feliz é todo ele recheado de êxtases de raciocínio. Vou deter-me no trecho que mais me encantou. Aquele que trata do britânico Jeremy Bentham, o filósofo utilitarista que foi assunto de um dos mais belos artigos sobre a felicidade que li: “Pode-se definir e medir a felicidade?”, escrito pelo francês Luc Ferry e publicado no jornal Le Figaro em 26 de julho de 2012 (eu o li em francês, em Paris mesmo, numas férias encantatórias e naturalmente felizes); e Ferry chega a ter uma breve citação num dos ensaios de Ser feliz. De onde vem o fascínio do trecho “Jeremy Bentham, felicidade se calcula”? Deste cruzamento intelectual tão refinado quanto transparente que Juremir faz como ninguém. Ele começa com uma frase simples, adrede ingênua: “A felicidade individual pode ser útil à sociedade?” Depois passa ao romance Rudine (1856), onde o russo Ivan Turguêniev opõe o rude Pigassof ao sofisticado Rudine, e Juremir usa com raro senso de atualidade aquela exclamação de Pigassof, apatetado diante das elaborações de Rudine, em que diz que prefere procurar os imbecis (ou o Brasil de nossos dias...). Depois chega a Bentham, e abre a hipótese de que o inglês possa ter influenciado a construção da literatura do russo. As circunvoluções do raciocínio de Juremir em torno de Pigassof, Rudine, Turguêniev, Bentham são tão provocativamente estapafúrdias quanto sensivelmente criativas: “Como ninguém é perfeito, Bentham defendia uma democracia censitária, com direito a voto reservado aos detentores de certa renda. Era inteligente demais para ser aceito com facilidade. Muita gente, reencarnando o colérico Pigassof, prefere ir ver os imbecis.” Juremir cria, por aí, a verdadeira filosofia brasileira. E torno a Álvaro: não há nenhuma razão para não se ter, entre nós, um filósofo e um sistema filosófico. Esta filosofia deve ter a humildade de utilizar referências “pop”: “Nas formulações teóricas e visões de mundo de Paris VIII, Marx, Nietzsche e Freud formavam o trio MNF, assim como, mais tarde, Messi, Suárez e Neymar formariam o trio MSN no futebol estonteante do Barcelona.” Pode-se partir de algo que interessa a todos: ser feliz. Mesmo que alguns caminhos ali percorridos não sejam tão fáceis, em suas referências, para a maioria. “Ser feliz é tudo que se quer. Kierkegaard não podia sê-lo.” Então: alguns sombrios europeus teriam capacidade de entender um filósofo brasileiro? Num opúsculo recente sobre filosofia, Diferença e descobrimento o que é o imaginário (2017), Juremir alude à hipótese do excedente de significação, algo como uma sobra de sentido. A felicidade à brasileira, interpretada à luz de leituras estrangeiras, seria o que sobrou de nossos significados e agora transformada nestes ensaios extasiantes e que são no fundo um único ensaio em Ser feliz? No fundo, lá no extremo fundo, o que assoma da leitura de Ser feliz é a junção de duas grandes forças da personalidade literária de Juremir Machado da Silva: sua força de leitor e sua força de escritor, a de interpretar e a de escrever, a interpretação um pouco como um excedente do que se escreve.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br