Charles Dickens é um dos grandes criadores do romance inglês do século XIX, talvez o mais rico de elementos genuinamente britânicos e de situações diferenciadas que se produziu na Inglaterra de então. As aventuras do sr. Pickwick (1832), majestosa obra-prima escrita por Dickens quando contava com escassos vinte e quatro anos, é um mundo à parte no universo da ficção, um cosmos literário que tem suas próprias leis, suas movimentações específicas. Embora inspirado nas vivências londrinas de um rapaz de 24 anos, é muito mais fruto da imaginação poderosa, febril deste rapaz, também um escritor único e por vezes delirante.

Samuel Pickwick e seu Clube Pickwick pertencem aos arquétipos literários definitivos; como Hamlet (o torturado pensador) na Inglaterra e Capitu (a fêmea humana e sua dissimulação) no Brasil, é personagem do coletivo que há muito fugiu de seu autor. Curiosamente a criatura de Pickwick é inteiriça, compacta, sem fissuras; mesmo que o romance em que se materializa se fragmente muito, dissociando-se em histórias paralelas e desvios de conversa, frequentes nesta enciclopédia romanesca que é o livro de Dickens.

A afeição de Dickens pelo sentimental e uma relação distanciada e assexuada entre as figuras em cena podem atrapalhar a fruição do texto pelo público de hoje, bombardeado por uma edificação sexual desenfreada e um cinismo de relações a cada esquina. Mas, mesmo que se possam associar certas situações de Dickens a alguns melodramas espúrios que vieram no encalço, o autor sobrevive em sua grandeza a uma tensa alegria que palpita em cada página.

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)