Despertando em Outra Cor

Acordei negro eh, como romance, como literatura, como obra de nuncia, uma experiencia estranha

22/11/2019 03:51 Por Eron Duarte Fagundes
Despertando em Outra Cor

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A personagem, um homem branco antes da narrativa começar, desperta negro no primeiro dia narrado. “Acordei negro” é a frase de abertura do romance Acordei negro (2019), de Juremir Machado da Silva, uma edição conjunta da Sulina e da Figura de Linguagem, esta uma editora dirigida por negros. Quando se olha no espelho, a personagem, que é quem narra sua própria história no livro, aponta suas novas características: lábios grossos, crânio reluzente, pele escura; o tipo físico do negro em qualquer parte do mundo, com suas variações locais. Este ser criado pelo romancista vai atravessar o texto como um homem preto, enfrentará um universo racista e de quando em quando evocará seu passado branco como formas da memória; este jogo entre passado e presente põe a culpa branca a contracenar com a negritude num corpo único, há uma dialética racismo-culpa em que expiar hoje (como negro vítima dos diferentes coeficientes de racismo) é também espiar o que se foi (um branco inconsciente de suas responsabilidades num universo racista).

Desperto, mal pondo o pé nas ruas, a criatura topa com o preconceito. Vendo-se ainda um pouco como branco, o sujeito choca-se. O primeiro encontro é com uma autoridade das ruas. “É um policial fardado. Tem o nariz aquilino e uma rachadura no lábio inferior. Exibe uma barba suja de dois dias. Percebo que ele me olha de uma maneira especial, diferente, algo que nunca experimentei. É um olhar enviesado, ambíguo, frio, cortante, zombeteiro. Um dos botões marrons da sua camisa está quase solto.” Diante da rispidez policial, a personagem só faz resmungar: “Não estou me sentindo bem.” Não há nenhuma compreensão; só lhe dizem: “Vaza.” De cenário em cenário, pelo Rio de Janeiro, por São Paulo, chegando a Quelimane, na África, para descobrir-se, dirigindo-se a Samarcande, na Ásia Central, onde se dará uma conversa mística, para seguir um rito quase medieval, a figura central de Acordei negro percorre um caminho de descobertas: a essencial descoberta é que a frase final do romance (“Meu sonho de ser negro.”) já estava dentro da frase inicial, “acordei negro”; antes de acordar, estava o sonho, neste sonho um homem branco sonhava com ser negro, era um sonho que estava no sono do homem (dorme-se para sonhar, para ter imagens novas da realidade), mas era também um sonho como desejo: para entender sua culpa, o homem branco quer ser negro —por alguns episódios, por sua vida ou parte dela, ao longo dum romance. “Meu sonho de ser negro” pode ser traduzido, no interior da própria língua, por “anseio por ser negro”.

No início da narrativa, num de seus cenários que se abrem para descobertas, a personagem está no metrô de São Paulo. Anota: “Eu estava no metrô, em São Paulo, faz algum tempo, sentindo a mais devastada solidão me pesar sobre os ombros, quando uma mulher de minha idade entrou e sentou-se à minha frente. Tinha os cabelos ruivos amassados. Alguns segundos depois, ela me olhava fixamente. Baixei os olhos. Ela continuou a me perseguir com sua interpelação. Num impulso, ergui a cabeça e entreguei meu rosto a ela.” Então esta mulher do metrô chama a personagem pelo nome, reconhece o homem, cita-lhe a mãe, o endereço em que morava nas perdidas do interior. A personagem que narra revela: “Era Lina. Fazia 40 anos que não nos víamos. Na última vez, eu tinha 10 anos e ela oito. Estávamos na pequena estação ferroviária do nosso vilarejo, a oeste da capital. Ela era a menina mais linda do lugar. Todos a chamavam de espiga de milho ou de boneca ruiva. A tarde caía na primavera com a lentidão de um raio de sol morno e preguiçoso. Lina embarcava no trem com a família para uma viagem de férias. Fui me despedir. Não conhecia o ‘nunca mais’.” Ao se despedirem no metrô, a mulher adverte: “—É uma viagem longa, Dinho. Você vai voltar.” No delírio final do romance, após o longo espaço místico na Ásia, Lina, a garotinha da infância, está de volta, como prometido ou vaticinado. “Contra todas as probabilidades”. Entre o metrô de São Paulo e o avião que cai com o corpo da personagem central, entre a experiência negra e as lembranças de um tempo branco, uma pausa diante da infância de antes do sonho, de antes do despertar negro, ou misturando-se com tudo isto, o passado branco, o presente negro, o périplo único de um ex-branco. “Não posso hesitar. Chego bem perto dela. Sopro, como ela fazia comigo quando éramos crianças, sobre os seus olhos. Ela desperta, olha o vazio e, como se me visse, sorri. Leio nesse seu sorriso a certeza de que me vê. Sei que sempre velou por mim.”

Juremir tem usado sua voz de escritor e jornalista para denunciar. Uma de suas denúncias nos últimos anos é o racismo institucionalizado num país de falsa cordialidade racial. Dois de seus livros de história, sociologia e antropologia - História regional da infâmia (2010) e Raízes do conservadorismo brasileiro (2017)— tratam destas relações entre a sociedade branca e o negro no Brasil; o primeiro mostra as sementes racistas na Revolução Farroupilha, no Rio Grande do Sul do século XIX; o segundo medita sobre a constância de certos conceitos conservadores em nossa sociedade marcada por vários séculos de escravidão negra; em ambos os estudos uma demonstração de como o que a sociedade gaúcha e a brasileira são hoje já estava no passado destas sociedades, de como a elite, para conservar seus privilégios, ainda se vale dos mesmos sofismas que eram usados há dois séculos. Em Acordei negro Juremir propõe um narrador em primeira pessoa que vai dar uma dinâmica romanesca a suas reflexões históricas, sociológicas, antropológicas —algo que o romancista vem buscando, depurando, despojando desde Cai a noite sobre Palomas (1995), que era um romance de ideias; Acordei negro, ao contrário, é mais um romance de sensações; entre os dois, a poesia é o denominador comum; uso e escolha das palavras, formas sintáticas, sugestões metafóricas sempre retornam no texto de Juremir ao longo de mais de duas décadas como um aviso humanista.

Acordei negro é, como romance, como literatura, como obra de núncia, uma experiência estranha. Escrito por um branco, o livro expressa o desejo deste homem de ser negro para estabelecer uma força crítica mais autêntica que aquela que lhe é dada por sua natureza branca; este desejo ultrapassa a personagem criada e chega ao autor por trás das cortinas de vocábulos; esforçando-se por sair dos estreitos limites do lugar de fala (aquela estante de um branco com seus privilégios), mas sempre consciente da circunscrição a estes limites de fala, Juremir usa a imaginação e seus  símbolos para criar este seu sonho de ser negro. Não sendo possível na vida do lado de fora de sua narrativa, o é em sua literatura. A literatura antirracista é escassa ainda no Brasil, desde o primitivo Úrsula (1859), de Maria Firmina dos Reis, esta a primeira mulher que publicou um romance entre nós, até um poema como Vozes-mulheres, de Conceição Evaristo, cruzando pela literatura dum negro que pouco falou dos negros e do instituto da escravidão, Machado de Assis, lembra-se o conto O caso da vara, e pelos romances dum negro panfletário e furioso, Lima Barreto, que atacou o preconceito étnico especialmente em Clara dos Anjos, escrito em 1922 e que só veio ao conhecimento do público em 1948. Acordei negro é um outro despertar na literatura brasileira: uma atualização do século XXI para estas vozes todas.

Texaco (1992), de Patrick Chamoiseau, uma obra-prima que se debruça sobre o mundo escravagista duma Martinica sinuosamente mítica, abre com a entrada de Cristo em Texaco, entrada em que “le Christ reçut une pierre dont l’agressivité ne fut pas surprenante.” Acordei negro, de maneira não menos incisiva, inicia com a imagem de um homem que acorda negro para cumprir seu calvário à brasileira. Acordei negro ajuda-nos a traduzir o texto francês de Chamoiseau: também para a criatura de Juremir surge uma agressividade (uma pedra que ele recebe aqui e ali) que não foi surpreendente: é parte do jogo de lodo em que estamos afundados. Ao acordar, a personagem desperta para outra cor que não aquela a que estava habituada: e convida o leitor a coexperimentar este acordar em nova cor.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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