Juremir, a Mltipla Cabea
Juremir Machado da Silva, um escritor mltiplo
O universo cultural provinciano tem suas excentricidades. Uma das melhores observações sobre Juremir Machado da Silva (uma das poucas que não me deixam insatisfeito, incluindo minhas próprias observações) foi escrita por Luis Fernando Verissimo. Está lá, na orelha de A noite dos cabarés (1991). Diz Verissimo: “Se este guia for alguém como Juremir, que reúne na mesma cabeça, e no mesmo estilo, a curiosidade do antropólogo e a acuidade do observador cultural, então o tour vira uma viagem em todos os sentidos.” O que é uma viagem é o universo cultural provinciano. Luis Fernando é um escritor bastante oposto a Juremir. Alguns anos depois da observação da orelha de A noite dos cabarés Luis Fernando virou uma espécie de desafeto cultural e humano de Juremir. Verissimo irritara-se com um artigo de jornal em que Juremir assacara questões contra Luis Fernando e Papai Verissimo (Erico). Luis Fernando, é claro, não escreveria mais orelhas para Juremir. No entanto, o papel gravou o que pensou Verissimo sobre Juremir, e não tem como nem Juremir nem Verissimo se livrarem daquela frase. Uma das melhores ditas sobre Juremir Machado da Silva, um escritor múltiplo e o mesmo como assevera Verissimo.
Em 2010 Juremir lançou dois livros que demandaram pesquisa —é a dita “curiosidade do antropólogo e a acuidade do observador cultural”. Se isto transparece naturalmente no ensaio histórico História regional da infâmia (2010), lançado por uma editora local, a L&PM, no romance 1930, águas da revolução (2010), edição da nacional Record, a questão traz alguns paradoxos de construção narrativa que enriquecem a questão. Que faz Juremir em seus livros? Como a história se insere na edificação de seus romances históricos? Getúlio (2004), romance em que o ficcionista ressuscitou com dignidade o gênero histórico, ainda disfarçava nos liames ficcionais os esforços das pesquisas. Em 1930 Juremirradicaliza. Romance? Em todas as frases ressoam os aspectos duma crônica histórica: tudo parece real, somente a linguagem e certas formas narrativas se afeiçoam à invenção. Décio Freitas, historiador gaúcho já falecido, é aqui e ali referido por Juremir ao longo de seu romance. Juremir, sem embargo de sua explosiva personalidade própria, nunca deixou de ser um discípulo da inteligência e das boas conversações à mesa de Décio. Décio, um homem de letras que escrevia ensaios históricos, certa vez disse, em conversação pessoal, que gostaria de escrever um romance histórico, mas lhe faltava aptidão, pois num determinado momento da narrativa teria de preencher a ausência de dados inventando, e aí não saberia como. Cuido que Décio poderia ter uma resposta em 1930, onde todos os episódios exalam a realidade e, diante de suas pesquisas, Juremir não precisa inventar nada, apenas criar a linguagem; se alguma invenção houve, ela está bem oculta e dissolvida nos fatos pesquisados.
“História e literatura confundem-se” diz lá pelas tantas o narrador de Juremir em 1930. No início dos “Agradecimentos” de História regional da infâmia Juremir anota: “Este livro não teria sido possível sem a enorme colaboração de muitas pessoas maravilhosas.” Nos “Agradecimentos” de 1930 Juremir não dispensa dizer: “Um livro, mesmo individual, sempre depende de muitas pessoas”. Tanto o ensaio quanto o romance tiveram a mesma, vamos dizer assim, pré-produção: pesquisa, gente em volta informando. É a cabeça do antropólogo girando. Mais do que nunca, Verissimo tinha razão.
1930 circula pelo Rio Grande do Sul, pelo Rio de Janeiro, por Minas Gerais, pelo Nordeste brasileiro, colhendo a formação, o estouro e as consequências da Revolução de 1930, uma espécie de evento central da política brasileira do século XX. Há um homem, um homem do século, que fez a Revolução e, quase centenário, é uma cabeça-piloto de que se serve o narrador de Juremir para construir um ponto-de-vista pilar da história. “Todo agradecimento do mundo a Gabriel d’Ávila Flores, cujas memórias, aos 98 anos de idade, irrigaram meu texto.”, conclui Juremir em seus agradecimentos finais. Gabriel não chega a ser o único pilar de 1930; é um dos pilares, a maioria deles textos deixados pelos protagonistas políticos da linha de frente; tinha de haver um pilar que revelasse o cotidiano, um soldado revolucionário obscuro nas fontes históricas: irrigar, diz Juremir, e poderia dizer-se atualizar, refrescar.
Se “a história é uma obra de ficção”, como quer Juremir que impõe o conceito a seu narrador, a cabeça de Juremir é o melhor espelho deste narrador histórico. “Getúlio, olhando as ruas encharcadas, perguntará: será que a revolução vai alagar o Brasil?” Invenção? Nada disto. Em algum momento Getúlio terá imergido nesta introspecção. Getúlio Vargas, o amável ditador, é uma das obsessões de Juremir, gaúcho como Getúlio, nos últimos anos. Escreveu dois romances para tratar desta obsessão. “Um romance precisa ser um descobrimento, uma transformação, uma metamorfose aquém ou além do seu tempo, com ou sem justificativa.”
Um pronome indefinido, “nada”, começa a frase inicial de 1930, que de cara ergue a figura tentacular (como a própria cabeça de Juremir —vide Verissimo) de Getúlio na cena do romance (?). Um advérbio, “ainda”, conclui, solitário e enigmático, este “romance de anotações históricas e políticas” que é, exuberantemente, 1930, um dos mais belos livros de Juremir Machado da Silva (o que é um superlativo em se tratando da excelência de sua obra).
(eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a dcada de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicaes de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br