Rebelio, Represso e Amores Humanos

Vanina Vanini (1829) um dos textos menos conhecidos hoje em dia do autor que revolucionou a novelstica do sculo XIX

18/12/2014 13:07 Por Eron Duarte Fagundes
Rebeli達o, Repress達o e Amores Humanos

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Comecemos pela novela do escritor francês Stendhal. Vanina Vanini (1829) é um dos textos menos conhecidos hoje em dia do autor que revolucionou a novelística do século XIX com obras como O vermelho e o negro (1830) e A cartuxa de Parma (1839). A novela foi publicada em 1829 na “Revue de Paris” e não teve publicação em livro durante  a vida do escritor; só anos depois da morte de Stendhal o executor testamentário do ficcionista incluiu o texto nas “Crônicas italianas” do mestre francês. Ao que se diz, Stendhal compôs estas anotações sentimentais de um sopro e nunca procedeu à revisão delas, o que explica um certo desalinho narrativo e algumas incongruências fáticas, como duas apresentações da personagem do príncipe Lívio Savelli, uma logo no começo da história quando o pai da personagem central apresenta à sua filha alguns partidos nos salões de dança e ela dá com Lívio, que estaria embeiçado por ela, mais adiante Stendhal repete a apresentação de Lívio à heroína (e ao leitor) agora feito pelo próprio pai como se fosse uma criatura recém entrada na história. Mas estes pequenos deslizes não retiram a profundidade e o natural rigor desta obra-prima, comprovando que um grande livro não se faz matematicamente pela soma de acertos e erros, antes é uma questão da sensibilidade do escritor. Sensibilidade que sobra em Stendhal, um precursor das elegâncias e sutilezas que outro francês, Marcel Proust, exacerbaria em suas experimentações com o tempo e o espaço do romance do século XX. Como todas as mulheres da ficção de Stendhal, Vanina é uma figura voluntariosa, radical e forte em suas condutas sentimentais; ela é da estirpe de Madame de Rênal, a louca atrevida mulher casada que se envolve com um jovem ambicioso em O vermelho e o negro. Como em todas as suas narrativas, Stendhal dá precisão histórica a suas ambientações: os amores de suas personagens não transitam no vazio e são na verdade celebrações de um certo heroísmo pátrio. (Há na novela um trecho em que o jovem rebelde Pietro Missirilli introduz-se numa introspecção sobre o valor de sua paixão pela princesa Vanina quando urgem as questões sociais da pátria). O cenário de Vanina Vanini é a Itália convulsionada por jovens lutadores carbonários que se rebelavam contra os governos parasitários e o clero conformista que apoiava estes governos; a sombra do mundo bonapartista, com seus ares decadentes, é uma das obsessões da clínica literária que é o texto de Stendhal. O amor denso e também melodramático de Pietro e Vanina não se realiza; no  trecho do livro ele permanece na prisão, pronto para ser executado à morte e irritado com o comportamento venal dela, e ela vai casar-se com o príncipe Lívio, indicando as conciliações sociais que Stendhal sempre criticou. O romancista é bastante clínico em expor os ajustes sociais das relações humanas no parágrafo derradeiro: “Vanina resta anéantie. Elle revint à Rome; et le jornal annonce que’elle vient d’épouser le prince don Livio Savelli.” Misturando desalinhadamente um passado fixo (“resta”, “revint”) com um presente no lugar do tempo passado (um “passado histórico”, “annonce”) e uma construção presente que indica um passado de agorinha mesmo (“vient d’épouser”), Stendhal relaxa no rigor da linguagem mas mantém sua vivacidade ficcional de sempre.  É claro que na obra de Stendhal navega uma atmosfera romântica característica de toda a literatura do século XIX, mesmo a realista ou naturalista; a principal figura feminina de Diva (1864), do brasileiro José de Alencar, em algumas de suas hesitações e pudores emocionais e sexuais, parece calcada em Vanina. Mas vai uma distância de anos-luz entre a agudez estética de Stendhal e os traços retóricos moralistas e conformistas de Alencar.

O cineasta italiano Roberto Rossellini, numa fase de indefinições que lhe custou bastante desprezo da crítica, fez seu Vanina Vanini (1961). Rodado logo depois de Uma noite em Roma (1960), que retomava atualizando os conceitos neorrealistas de suas origens, e pouco antes de Rossellini embarcar para os rigorosos e didáticos documentários televisivos, Vanina Vanini guarda respingos de toda esta miscelânea interior do grande cineasta. Como a própria novela em que se baseou, o filme de Rossellini é um trabalho menos referido e menos conhecido de um grande artista. Mas o que se disse aqui do livro vale, de certa maneira, para o filme: apesar de uma ou outra incongruência, Vanina Vanini é uma obra muito acima da média de quase tudo o que cinema pode apresentar em qualquer época; é bem verdade que a música de Renzo Rossellini parece muitas vezes desfuncional e óbvia (em quase todos os filmes de Rossellini a música corre na verdade caricatamente ao lado da imagem, mas isto não descaracteriza a natureza essencial de quase todas as suas narrativas), é também certo que às vezes incomoda a forma meio bruta com que um esteta como Rossellini deixa entregue às suas canastrices melodramáticas intérpretes como Sandra Milo, Laurent Terzieff e Martine Carol; porém acima de tudo paira o gênio de filmar de Rossellini, que impõe sutileza e profundidade desde a excepcional pintura de época de seu filme até a confluência de seu melodrama com a história. Rossellini faz um filme de época, isto é, não atualiza o cenário para o tempo dos aviões e dos carros, preferindo prender-se aos cavalos e carruagens; mas a atualização narrativa de Rossellini é de natureza moral, ele converte Stendhal num irmão do século XX. Há em Vanina  Vaninium pouco das origens documentais do cineasta, mesmo que as exacerbações melodramáticas dificultem  esta aproximação. E em Vanina Vaninijá vemos a elaboração histórica que orientaria logo depois seus documentários para a televisão. Assim, o filme de Rossellini é a confluência de indecisões e perplexidades de um grande olhar do cinema. Apaixonado, italiano, Rossellini acaba sendo muitas vezes menos cerebral que Stendhal. No fim do livro, depois de Pietro tentar agredir Vanina com a corrente que lhe aprisiona as mãos, Stendhal dissocia os amantes: ele permanece preso e condenado e ela, noticia um jornal, se está casando com Lívio. No filme nada disto acontece e a intersecção de Lívio no amor dos dois é tênue e apagada. No filme, depois do desentendimento dos amantes na visita que ela lhe faz no cárcere, a penúltima sequência vai mostrar Pietro subindo o cadafalso para morrer; a sequência final é a de Vanina correndo ofegante pelos campos até chegar a um portão que lhe é aberto por uma freira: um retiro espiritual num convento? No filme os amantes não são dissociados: são tragicamente, e cada um a seu modo e circunstâncias, destruídos como amantes. Para além de sua grandeza, pode-se aquilatar a influência de Vanina Vanini pela referência a ele feita por outros dois grandes filmes: em O desafio (1965), do brasileiro Paulo César Saraceni, a personagem de Ada fala duma ida ao cinema com Marcelo em que viram o filme Vanina Vanini; em A primeira noite de tranquilidade (1974), do italiano Valerio Zurlini, a jovem estudante se chama Vanina e quando seu professor lhe lembra que há um livro com o nome dela, ela confirma, Vanina Vanini, mas acrescenta que há também um filme antigo com este nome. Os aspectos stendhalianos buscados com mestria por Rossellini topam ecos precursores em Noites brancas (1957; embora extraído do universo de Dostoievski) e em Sedução da carne (1954; este por sua delicada evocação dum clima marcial ou militar de época), ambos filmes do italiano Luchino Visconti; e as grandes cenas de baile de Vanina Vanini se interligam geneticamente com aquelas que Visconti rodaria em O leopardo (1963).

O certo é que livro e filme, Vanina Vanini, são objetos raros em seus respectivos mundos. Quase incógnitos, entes secretos dos altares cinematográfico e literário.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a dcada de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publica苺es de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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