No Dizer Coisa Com Coisa: O Sarcasmo de Bianchi
No Dizer Coisa Com Coisa: O Sarcasmo de Bianchi
A essência do realizador brasileiro Sérgio Bianchi é a de documentarista. Os seres que agem em seus documentários são ideias: aquelas ideias que movimentam a sociedade brasileira. Ele documenta não somente o cotidiano de nossa classe média, como fez em determinada época Arnaldo Jabor, mas também pode verter a metáfora (e o delírio) em objeto documentado. Jogo das decapitações (2013) é um novo exercício de seu sarcasmo, alimentado pelo menos desde seu distante Romance (1988), uma visão do país onde todas as ideias se encontram para chegar a lugar algum. Se alguma coisa é dita no bombardeio de palavras, pensamentos, situações e indivíduos que desfilam em Jogo das decapitações, é que a coisa no Brasil está complicada e o beco está no momento sem saída. Que sobra para um diretor do filme? Retratar o momento: com uma lucidez máxima e também espantosa.
Para não perder o eixo do caleidoscópio, como ocorria com os experimentalistas mais desajustados, Bianchi arregimenta as diversas questões que aborda em torno de duas personagens, uma mãe madurona que foi torturada pelo regime militar e vem a receber uma bolada de indenização e seu filho desempregado que investe numa tese de mestrado na universidade, e uma evocação, o pai biológico do filho sem emprego e estudante, este pai biológico do rapaz fora um cineasta e escritor que viveu as contradições do regime de exceção e ali mergulhou quase da mesma maneira que Bianchi mergulha nos tempos brasileiros atuais em seu filme (este diretor de cinema-personagem, chamado Jairo Mendes, parece ter pinceladas de nosso mítico Glauber Rocha). No entanto, ainda que erija uma estrutura com pilares, Bianchi vai vergando tudo com uma lábia cinematográfica desorientada e desorientadora. Vê-se o desespero no sarcasmo brasileiro de Bianchi: apieda-se, sorrateiramente, do país.
Talvez o lado mais chocante das coisas que emite Jogo das decapitações seja a referência a uma espécie de indústria da ditadura que se teria instalado no país nos últimos anos. Em cena alguém diz de outrem: “Passou uma noite na cadeia e vai receber quinhentos mil reais.” Para os verdadeiros torturados de ontem, isto certamente vai chocar. Bianchi documenta o fato. Ironiza: quem sabe distinguir exílio de intercâmbio? Na verdade, Bianchi, como bom elemento da classe média brasileira, se decapita ao longo de seu novo filme: o sentido das coisas se foi na morte das ideias; agora talvez seja a hora de dar voz ao canário, como num conto de Machado de Assis —em Bianchi um ávido animal humano copula com uma ovelha. Em 1994 Bianchi visitou a ficção de Machado de Assis no filme A causa secreta. Mas são trechos de um filme de Bianchi, Maldita coincidência (1979), que aparecem em Jogo das decapitações ficcionalizados como trechos do filme dentro do filme que é também chamado Jogo das decapitações e foi realizado pelo diretor-personagem Jairo Mendes; a recuperação de arquivo permite o reencontro com um debochado ator, então jovem e magro, Sérgio Mamberti, para confrontá-lo com sua presença nas filmagens atuais, com mais corpo, mais trêfego, amargo e já sem a espontaneidade de outrora. Este jogo (decapitado?) que Bianchi opera dentro de seu próprio cinema ao filmar Jogo das decapitações é um sopro que permite respirar, ainda que desesperadamente, no interior de suas negras imagens.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a dcada de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publica苺es de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br