O Cenário Avança Para Dentro da Personagem
Poucas vezes Federico Fellini foi tão terrivelmente metafórico quanto no filme Julieta dos Espíritos
Há muitos momentos em Julieta dos espíritos (Giulietta degli spiriti; 1965), rodado pelo italiano Federico Fellini numa fase imprecisa e dubitativa de sua filmografia, em que os cenários parecem avançar por sobre as personagens aderindo-se finalmente ao interior descontrolado das criaturas fellinianas. Poucas vezes Fellini foi tão terrivelmente metafórico quanto neste filme; para Fellini, aqui mais do que em qualquer outro trabalho, o mundo é uma metáfora da mente: um ser de Fellini, assim como seu criador, inventa o universo, muda-o num signo puro, perigosamente abstrato, perigosamente vazio, porém dotado duma pujança de formas que nos tira o chão e até o fôlego. Em Casanova de Fellini (1976) uma personagem da nobreza europeia antiga exclamava que ali tudo era metafórico; Fellini já vinha trabalhando a questão da metáfora, e seus delírios exagerados em Julieta dos espíritos só topariam imagens assemelhadas (a excentricidade à beira do gratuito, do quase-ridículo) em A cidade das mulheres (1980), outra das visões fellinianas eternamente malditas.
Em seu tempo, Julieta dos espíritos não foi muito bem recebido por aqueles que, a despeito de A doce vida (1960) e Oito e meio (1963), ainda nutriam esperanças de que o cineasta voltasse ao teor formal de suas primeiras obras-primas, como Os boas-vidas (1953), A estrada (1954) e As noites de Cabiria (1957), onde os aspectos fellinianos de linguagem eram controlados por escrúpulos realistas. Numa cena de Oito e meio uma repórter, interpretando um momentâneo silêncio do diretor de cinema Guido Anselmi diante duma pergunta, volta-se para a câmara e afirma: “Ele não tem mais nada a dizer”. Na década de 60, diante de Julieta dos espíritos e depois Satyricon (1969), os analistas usaram a frase de Oito e meio como uma autoprofecia de Fellini, que teria esgotado os recursos de sua arte, perdendo-se na poeira. Uma revisão de Julieta dos espíritos permite avaliar seus pequenos problemas, uma narrativa que se descontrola narcisisticamente produzindo um ritmo às vezes incômodo, mas revela notavelmente: ninguém no cinema filmou com esta explosão vital de Fellini, que transforma o retrato psicanalítico da burguesa Julieta (assombrada por seus fantasmas, entre eles o do adultério do marido, Giorgio) num espetáculo encantador. Mesmo que Fellini se tenha depois recuperado dos possíveis desacertos de seus filmes no fim da década de 60 com obras-primas como Roma de Fellini (1972), Amarcord (1973) ou mesmo o incompreendido Casanova de Fellini, este Julieta dos espíritos, para o felliniano que o revê, é um repertório barroco que ajuda a interpretar os dilemas estéticos de seu realizador.
Depois de vagar com sua câmara por fantasmas assustadores da mente de Julieta, Fellini vai dar cabo de seu filme com uma sequência em que um primeiro plano fixo de Giulietta Masina (um dos rostos do cinema) se contrapõe a uma panorâmica em plano geral em que Julieta caminha num intenso cenário verde natural: a última imagem da fita é o lento movimento lateral da câmara que capta o andar de Julieta entre as árvores.
Numa comparação clássica com o antípoda de Fellini, pode-se dizer que Julieta dos espíritos tem uma função idêntica àquela de Face a face (1976) no cinema do sueco Ingmar Bergman. As fantasias expressionistas da criatura de Liv Ullmann no filme de Bergman são como os delírios surrealistas da personagem de Giulietta Masina no de Fellini, claro: cada cineasta expõe a psicanálise a seu modo, seco e árido em Bergman, espetacular e maravilhoso em Fellini. Outro dado que reforça a aproximação: na época de Face a face, que fazia paralelo com Cenas de um casamento (1974) depois da exuberância de Gritos e sussurros (1972), Bergman atravessava uma fase de indefinições que perturbariam seus admiradores.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br