O Cenario e o Homem em Jose Geraldo Vieira

No come?o do romance A mulher que fugiu de Sodoma (1931), de Jose Geraldo Vieira, o drama da narrativa ja eh posto em alta voltagem

31/05/2021 19:57 Por Eron Duarte Fagundes
O Cenario e o Homem em Jose Geraldo Vieira

tamanho da fonte | Diminuir Aumentar

 

 

No começo do romance A mulher que fugiu de Sodoma (1931), de José Geraldo Vieira, o drama da narrativa já é posto em alta voltagem, a seráfica personagem de Lúcia está com sua alma às voltas com a perdição de seu marido Mário, viciado em jogo a partir do qual vai acumulando dívidas. Desde as páginas iniciais deste seu primeiro livro, o autor põe em marcha um processo de narrar que ele sabia dispor como ninguém, relacionar os sentimentos duma personagem com o cenário por onde esta criatura se desloca; o drama está posto de cara, mas o que lhe vai dando grandeza é a criatividade ininterrupta do barroquismo de linguagem de José Geraldo.

Profundamente perturbada com a necessidade de Mário de arranjar dezesseis contos para saldar uma dívida nascida do jogo, Lúcia vai para a rua. O narrador sabe descrever com intensidade o que se passa no interior desta mulher, uma das mais belas criações femininas da literatura brasileira. José Geraldo não poupa os recursos da língua, organizados com sua sensibilidade de escritor, para pôr no papel as sinuosas relações entre Lúcia e Mário partindo das características únicas destas personagens. Ao jogar para a rua a busca desesperada de Lúcia, José Geraldo articula algo bastante complexo na estrutura de um romance: como um cenário se move diante dos tumultos interiores duma pessoa.

“Andando pela avenida, ia considerando como é acabrunhador constatar que em torno de nós, homens e coisas não comparticipam da nossa aflição. Tudo fica indiferente e imutável, nada sofre a presença compacta da nossa dor, que transborda.”

Lúcia vaga. A narrativa a transforma num puro espírito, ainda que haja uma ambientação física à sua volta.

“O martírio é real, tem peso atômico, é palpável, tem forma, tem relevo, tem arestas, e é uma barra pesando toneladas de opressão.”

O ponto central desta relação entre o interior da personagem e o exterior em volta ainda não está aí, nesta primeira ida para as ruas que lemos de Lúcia, por mais belas que sejam as conexões que o verbo de José Geraldo vai descobrindo. O ponto nevrálgico vem logo depois, quando Lúcia, movida pela morte dum menino desleixado por Mário, seu médico, em nome do vício do jogo, abandona célere sua casa e casamento. Lúcia sai desabalada de casa, em seu desespero moral. Há uma chuva forte na cidade; e os aspectos físicos da chuva se metamorfoseiam, no texto, em símbolos do interior de Lúcia.

“Lúcia prosseguia. Mas, como a chuva agora apertasse e verdadeiras cascatas se despejassem obliquamente sobre o asfalto já quase sumido pela enchente, esperou sob um toldo, muito chegada a um portal e ainda assim sentindo os respingos. A água descia, em duas fileiras barrentas de cada lado da rua, já quase  se unindo. Apesar da treva, havia como que um reflexo, vindo não se sabia donde, que dava ao dorso líquido da enchente um brilho rugoso.”

José Geraldo e seu narrador são parceiros extremosos de Lúcia neste trajeto agudo mas incógnito. Para onde vai?

“A chuva parou, como obedecendo a uma ordem. Pessoas saíam, atravessando a sarjeta aos pulos; os bondes, meia hora depois, começaram a rolar sob aclamações alegres, com sujeitos que, nos bancos, dormiam encolhidos, vagamente trágicos e ridículos. No café desfizeram-se os grupos, pararam as conversas. Todos rumavam para casa. Na rua havia agora rumores metálicos, arrastados, correrias, vozes, barulhos de calhas transbordando. Chamou o garçom, pagou a despesa e pensou no problema que só agora lhe vinha ao espírito. Para onde ir?”

Lúcia foge por seu espaço físico, mas não tem como afastar-se de seu espaço interior.

“Mas, decididamente, o tempo estiava. Que fazer? Interrogava o chão, muito abstrata. Era bem ao fundo dum despenhadeiro que, de fato, ela se tinha jogado.”

Este primeiro romance de José Geraldo, consta que foi escrito em 1924 entre um sábado de carnaval e a quarta-feira de cinzas. Dizem que o poeta e editor Augusto Frederico Schmidt retirou o manuscrito da gaveta de José Geraldo, dando-lhe luz. É impressionante a rapidez da escrita de tal livro, não somente pela rapidez, mas essencialmente porque esta rapidez não tira ao texto sua agudeza e profundidade.

Após estes trechos de abertura em que o narrador tanto se condói dos sofrimentos morais de Lúcia quanto da estrada perdida de Mário, A mulher que fugiu de Sodoma foi desenvolver uma tentativa de reabilitação de Mário em Paris.

“Dia 2 de julho de 1924: um ano exato de Paris.” Assim principia a segunda parte do romance, Mário em Paris. Ao fazer seu verbo andar por um dos centros culturais do mundo, o refinamento erudito do escritor põe diante do leitor toda a abundância de seus recursos e referências. A arte literária antecessora desfila nestas páginas em momentos bem marcados na estrutura romanesca. A alguns José Geraldo dá diretamente os nomes. Mas às vezes, para o observador, surgem citações ocultas num dado ou vocábulo de passagem. “Ao vir o inverno, ele, um tropical, sentiu que devia haver poesia em Paris. Mas havia era um frio de rachar as mãos, e fazer pingar o nariz. Meteu-se na Biblioteca Nacional; ali, na sua pupitre, tinha criados às ordens, desde Homero e Virgílio até Max Jacob e Pirandello.” Pupitre. Pode-se ir diretamente ao parágrafo de abertura de Madame Bovary (1857), de Gustave Flaubert: “Nous étions à l’Étude, quand le Proviseur entra, suivi d’un nouveau habillé en bourgeois et d’un garçon de classe qui portait un grand pupitre.” Emma está mais próxima da perdição de Mário, no Rio como em Paris, do que da construção bastante idealizada de Lúcia.

A recuperação de Mário se torna uma coisa inconsequente, nos caminhos da capital francesa. O jogo volta a seu regaço. Mantido, de maneira incógnita, na França pelas remessas de dinheiro de Nuno de Almada, um milionário brasileiro em cuja casa Lúcia passou a trabalhar após separar-se do marido vicioso, fazendo a função de preceptora duma criança, Mário pouco a pouco se dissipa. Até chegar ao ponto em que vira um indivíduo de rua. Num determinado momento, encontra um amigo, que comercia com quadros e acolhe Mário, cujo desejo agora é voltar para o Brasil e reencontrar Lúcia. O amigo vende um quadro de Rubens para dar a passagem de volta a Mário. Quem compra o quadro no Brasil é Nuno: fecha-se o círculo do Destino. O título do romance, A mulher que fugiu de Sodoma, vem desta pintura: uma mulher seráfica que foge do universo de vício e perdição de seu marido. É também significativo que José Geraldo, um barroco por excelência, traga Rubens à citação, Rubens cuja intensidade barroca das pinturas é um dado. Falta a pedra final do trajeto trágico de Mário: passagem comprada para o Brasil, ele adoece de tuberculose, morre num subúrbio de Paris e é enterrado na própria capital francesa. A mão final da salvação o recusa: as culpas são muitas, em todos os lados.

Quando leu a correspondência que ia ter enfim ao relato do fim de Mário, Lúcia constrói um outro sofrimento, o luto, diferente mas igual àquele dos primeiros passos da narrativa.

 “Mário morreu! Tia Marta, ele morreu!...”

Lúcia ressuscita sua dor conjugal e sua culpa: como no início, os cenários não a compreendem; chocam-se.

“E continuou a chorar estranguladamente, indo desatinada da porta para a janela e da janela para a porta, como a querer dependurar-se nos cabelos. Por fim se sentou numa poltrona e com as duas cartas nas mãos lia trechos duma, conferia-os com trechos da outra. Nova golfada de pranto escureceu-lhe a vista; e então, sim, viu claro! Mário, continuava a segunda carta, lhe escrevera quatro dias antes de morrer. E esse Teodásio se declarara testemunha e endossante das palavras escritas em estado de graça, isto é, no auge do arrependimento.”

A mulher que fugiu de Sodoma é uma história trágica, muitas vezes melodramática; mas a categoria da arte de José Geraldo Vieira sublima a tudo. Há no desenvolvimento dramático muito do fatalismo cristão, civilizacional. No último movimento, duas mulheres, Lúcia e tia Marta, se encaminham como fugindo.

“—Vamos, tia Marta. Vamos embora!

Transpuseram o portão e seguiram pela calçada da rua transversal; o gradil do parque e do jardim parecia riscá-las. Mas logo sumiram no afã da fuga e do exílio.”

Esta imagem final do romance —duas mulheres em fuga— está carregada.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

Linha
tamanho da fonte | Diminuir Aumentar
Linha

Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

Linha

relacionados

Todas as máterias

Efetue seu login

O DVDMagazine mantém você conectado aos seus amigos e atualizado sobre tudo o que acontece com eles. Compartilhe, comente e convide seus amigos!

E-mail
Senha
Esqueceu sua senha?

Não é cadastrado?

Bem vindo ao DVDMagazine. Ao se cadastrar você pode compartilhar suas preferências, comentar ou convidar seus amigos para te "assistir". Cadastre-se já!

Nome Completo
Sexo
Data de Nascimento
E-mail
Senha
Confirme sua Senha
Aceito os Termos de Cadastro