A Liberdade na Estetica de Escrever
O Inventor da Eternidade traz um constante espetar politico e historico para dentro do lirismo estetico de Liberato
Ao longo dos anos, escrevendo muitas crônicas para jornais, Liberato Vieira da Cunha tem exercitado sua liberdade na edificação duma estética de escrever. O choque de sua prosa de densidade poética (simulando a superficialidade ou descompromisso das observações cotidianas) posta ao lado dos textos jornalísticos que se inserem junto destas crônicas de exceção, chamava a atenção por essa coexistência estranha, o escritor de exigências (Liberato) e o texto comum do jornal, sem criação ou pessoalidade. As relações entre literatura e jornalismo têm sua simbiose na arte de Liberato: uma literatura sem pompa e criativa. Seus romances (foram três até o momento) não deixam de ser extensões desta inquietações, o universo ficcional de Liberato é em muitos aspectos habitado pelas crônicas que escreveu, objetividade e poesia coabitam as narrativas longas do autor. Com o tempo, o ficcionista depurou estas tensões em que se reparte sua forma de escrever. Em sua terceira investida na ficção, O inventor da eternidade (2022), Liberato reinventa-se e propõe, desde o título de sua história, a essência da arte como uma invenção, o que se inventa é a eternidade.
Santelmo Cimbres, o professor de estética que numa manhã de 1984 é demitido da universidade às expensas do regime autoritário então agonizante, e, naquela confluência histórica do país, tensa e ambígua, vai ter de embarcar em seu Ford Corcel, sumir por aí e vai dar num esconderijo chamado Quinta do Torreão, como nos tempos mais ásperos da resistência à ditadura militar instalada vinte anos antes. Para além da personagem central da trama, Santelmo poderia ser o próprio usufrutuário estético do livro que Liberato põe diante do leitor, afinal esta personagem é professor de estética, e literatura é um dos modos da estética também, e pode-se imaginar uma personagem que sai do livro para examinar a este livro. Santelmo olha uma tela (uma pintura). No discurso usado por Liberato o leitor acompanha o narrador confundindo sua palavra com o pensamento da personagem: “A composição lhe pareceu tão absolutamente viva e perfeita que ele se perguntou se não seria realmente a invenção da eternidade.” Sua acompanhante, Beatrice, lhe aconselha, agora já no discurso direto: “—Pode pronunciar essas frases em linguagem de gente?” Ele se esforça na tradução. O leitor de O inventor da eternidade volta atrás no texto e compara. Como achar melhor forma para a sensação que aquela tirada de Heráclito: “Todas as coisas procedem de uma, e essa uma está em todas as coisas.” Há conceitos que se fundem em determinadas linguagens, que não admitem substituições ou traduções para a linguagem de gente.
O inventor da eternidade traz um constante espetar político e histórico para dentro do lirismo estético de Liberato (que muitas vezes tem aspectos fugidios e até secretos). No entanto, não se trata dum romance político, ainda que se cerque das circunstâncias políticas. É como se estivéssemos dentro dum porão, navegando em nossos fantasmas emocionais e doentios (Santelmo ama na calada dos dias em seu retiro a Beatrice mas tem uma doença terminal), e entre os sucessos daqueles dias escondidos e íntimos pudéssemos espiar por uma fresta, dando com uma luz duma espécie de trovão que iluminasse certos momentos de atmosfera penumbrosa. Em 1984, onde se passa a história contada, como agora, quando o romance vem à luz, nestes gestos finais de 2022, um ano que teve lá suas perversidades.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br