A Hipocrisia Moral Segundo Maupassant

O francês Guy de Maupassant é um mestre da narrativa. Sua fama na posteridade se deu especialmente pelos contos

23/05/2017 15:22 Por Eron Duarte Fagundes
A Hipocrisia Moral Segundo Maupassant

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O francês Guy de Maupassant é um mestre da narrativa. Sua fama na posteridade se deu especialmente pelos contos, embora tenha escrito romances que não diminuem seu engenho. Destes contos um dos mais famosos é Bola de sebo (Boule de suif; 1880), editado por Émile Zola numa coletânea naturalista e considerado por Gustave Flaubert como algo que perduraria; Flaubert morreria no mesmo ano em que o conto foi lançado e em que fez esta previsão. Bola de sebo teve mais um impulso na posteridade quando o cinema se interessou por sua história e John Ford fez sua conversão livre do texto de Maupassant, rodando o faroeste dos faroestes, No tempo das diligências (Stagecoach; 1939); mas é curioso observar a distância entre o despudor da literatura de Maupassant, eivada de naturalismo, mas nunca se resumindo aos preceitos da escola, e os pudores morais da Hollywood dos anos 30. Enquanto o narrador de Maupassant claramente define sua protagonista, a do papel-título, cujo codinome é Bola de Sebo, por ser gorda, como “prostituée” (prostituta) e “honte publique” (vergonha pública), a narrativa de Ford nunca define o problema da vida pregressa de sua personagem e só quem leu o conto pode arriscar a definição precisa. Enfim, dos livros de Maupassant ao cinema hollywoodiano de Ford, passando-se sessenta anos, as metamorfoses da sociedade não se deram em linha reta, obedeceram a avanços e recuos de maneira alternada.

Voltando ao conto de Maupassant, pode-se dizer que Bola de sebo estabelece as diretrizes do comportamento hipócrita da sociedade e que ainda hoje persistem. Hipocrisia é o ato de mudar a conduta moral de acordo com as conveniências do indivíduo ou duma classe social. Bola de sebo, a personagem central do conto (que chega a ter quase a estrutura duma novela, por seu desenvolvimento dramático), é uma meretriz que, num determinado momento, acaba embarcando numa diligência de figuras da alta sociedade francesa para fugir dos escombros da guerra franco-prussiana. Claramente hostilizada, especialmente por sua atividade sexual subterrânea, a criatura no entanto acaba provocando a aproximação das pessoas da sociedade fina quando há interesse destas pessoas. Em dois momentos precisos: quando, obrigados a ficar num lugarejo coberto de neve, estão esfaimados e a gorda cortesã desembrulha seus mantimentos de reserva; todos aceitam a cortesia da “intrusa social” e se atiram como bichos à comida. Mas o momento crucial, o que vai dar o significado do conto, é aquele em que o comandante prussiano, para liberar a comitiva francesa, chama a gorda prostituta a seu gabinete. Quando descobrem o que o soldado dos vencedores quer com a mulher e sabem da recusa dela, os franceses mudam o raciocínio, pensam que ela não tem nada a perder e passam a pressionar a criatura para ceder e presentear, assim, seus companheiros com a liberdade de seguir viagem. Cedido o que o prussiano quer, liberados para o prosseguimento da viagem, os pudicos da sociedade voltam as costas para a prostituta, e todos sentem nojo da ação dela. Inverte-se o sentimento social, numa reviravolta hipócrita. O vaivém moral e o pensar de acordo com as conveniências (de indivíduo ou de classe) não se alteraram muito em mais de um século após o escrito de Maupassant; o homem eterniza-se em seus problemas éticos, esta é uma parte que explica a eternidade do conto, a outra parte é a precisão da linguagem com que o escritor evoca este mundo escuso e sombrio da mente humana.

O choro final da protagonista é o nosso choro de leitores, seres humanos conscientes de nossa fraqueza. “Et Boule de suif pleurait toujours; et parfois un sanglot qu’elle n’avait pu retenir passait, entre deux couplets, dans les ténèbres.” (“E Bola de sebo chorava interminavelmente; e às vezes um soluço que ela não pudera reter cruzava, entre duas estrofes, as trevas.”). O final amargo e desconsolado de Maupassant é uma das muitas diferenças para com o filme de Ford, onde, no final, o pistoleiro vivido por John Wayne e a possível ex-meretriz na pele de Claire Trevor largam em disparada numa carroça  sob a exaltação de duas personagens que exclamam: “Eles se salvaram com a bênção da civilização.” A Bola de sebo de Maupassant não se salvou nem teve a bênção da civilização: antes foi cuspida por esta civilização e acaba o conto num canto, nas trevas, chorando.

A neve europeia do conto de Maupassant é substituída pelo vento das pradarias que invade o interior da carruagem no filme de Ford. O terror prussiano do texto literário é mudado no cômico terror apache do cinema. A interrupção de viagem no conto era a lascívia do comandante do inimigo mas no filme esta parada se deveu ao nascimento do bebê duma das passageiras. “Les mots de ‘prostituée’, de ‘honte publique’ furent chuchotés si haut qu’elle leva la tête” (“as palavras ‘prostituta’, ‘vergonha pública’ foram murmuradas tão altas que ela levantou a cabeça”), escreveu Maupassant pouco depois da aparição da personagem em sua cena. Com uma atmosfera inicial que às vezes parece ter sido depois a inspiração do escritor italiano Dino Buzzatti (“la vie semblait arrêtée”, “a vida parecia parada”, “l’angoisse de l’attente faisait désirer la venue de l’ennemi”,  “a angústia da espera fazia desejar a vinda do inimigo”) e uma estrutura temporal que remete a A descoberta austral (1781), de Restif de la Bretonne (um grupo de personagens características da sociedade numa viagem de diligência), Bola de sebo reforça o aspecto visionário de outro gênio francês, Gustave Flaubert, que previu a sobrevivência do texto de seu patrício.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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