Kirk Douglas: O Adeus ao Ultimo Durao
Nossa pequena homenagem ao grande ator, falecido aos 103 anos
Em “Trumbo” (2015), durante a paranoia Macarthista vários profissionais perdiam espaço de trabalho quando acusados de serem comunistas, entre eles o excelente roteirista Daltom Trumbo. Protagonista e produtor executivo de “Spartacus”, o ator Kirk Douglas ignorou o boicote e contratou Trumbo como roteirista. Sua força de caráter não esteve só visível diante das câmeras, mas também nos bastidores de Hollywood. A despedida desse grande ator falecido ontem dia 5 de fevereiro nos faz lembrar diversos episódios que permitem entender a grandeza de Issur Danielovitch, que o mundo aprendeu a reconhecer como Kirk Douglas.
Nascido em Nova York em 9 de dezembro de 1916, filho de imigrantes judeus originários da Russia. Mudou o sobrenome para Demsky quando criança enquanto sua família se fixava na América, legalmente passando para Kirk Douglas pouco antes de ingressar na Marinha durante a Segunda Guerra. Lutou boxe desenvolvendo um físico atlético que seria útil na composição de papeis rudes. Para conseguir uma bolsa para a universidade, entrou para um grupo de drama e veio a trabalhar no rádio e em comerciais de Tv. Nesse meio tempo conseguiu papeis pequenos no cinema estreando nas telas em 1946 em “O Tempo Não Apaga” (The Strange Love of Marha Ivers), papel que conseguiu por intermédio da amiga Lauren Bacall. O nobre ator conseguiu chamar a atenção para si no filme seguinte “Fuga do passado” (Out of the Past) no papel de um gangster. Em três anos veio a primeira indicação ao Oscar de melhor ator por “O Invencível” (Champion), no papel de um boxeador que o fez reviver uma fase de sua própria vida. Logo vieram o xerife de “Embrutecido pela violência” (Along The Great Divide), o detetive de “Chaga de Fogo” (Detetctive Story) ambos de 1951, mas apesar do sucesso destes, o obstinado ator tinha muito mais a dar, além de trazer o pão nosso para família formada em 1943 com a também atriz Diana Dill e com quem teve dois filhos: Michael em setembro de 1944 e Joel em janeiro de 1947.
Não demoraria para Kirk mostrar seu talento em dramas psicológicos como o papel do repórter Charles Tatum de “A Montanha dos Sete Abutres” (Ace in the Hole) de 1951 e no ano seguinte o produtor Jonathan Shields de “ Assim estava escrito” (The Bad & The Beautiful), uma visão crítica dos bastidores de Hollywood dirigida por Vincent Minelli. A versatilidade passou a ser uma marca na carreira de Kirk Douglas, oscilando entre papéis mais físicos e outros mais desafiadores, e sempre sem medo de se arriscar. Logo, interpretou o rebelde marinheiro Ned Land na adaptação da Disney para “20000 Léguas Submarinas” (20000 Leagues Under The Sea) ao passo que incorporou o pintor Vincent Van Gogh na cinebiografia “Sede de Viver” (Lust for Life) dirigida por Vincent Minelli. Por este, o ator levou o prêmio de melhor ator da crítica de Nova York. Filmado no mesmo local de nascimento e morte do pintor pós-impressionista holandês. Apesar de várias indicações ao Oscar, incluindo para Kirk que perdeu para Yul Brinner por “O Rei & Eu” (The King and I). Apesar da excelente atuação de Kirk, do elenco de “Sede de Viver” quem levou a estatueta dourada foi Anthony Quinn como coadjuvante por uma participação de 22 minutos como o também pintor Gauguin. Segundo o site imdb, na cena em que Van Gogh corta sua orelha foi tão impactante que Michael e Joel, filhos de Kirk choraram em desespero por acharem que seu pai havia se mutilado de verdade. Vários westerns se aproveitaram de seu talento como “Rio da Aventura” (The Big Sky) de 1952 , “Homem sem Rumo” (Man without a Star) de 1955 (quando Kirk fundou sua propria produtora, a Bryna Productions, com intenção de obter maior controle sobre sua carreira) e “Duelo de Titâs” (Last Train From Gun Hill) de 1959. Neste último, travou um acirrado duelo em cena com o igualmente talentoso Anthony Quinn.
Foi ao lado do icônico Burt Lancaster que Kirk Douglas teve diversas atuações impressionantes forjando uma parceria muito bem sucedida diante do público e que duraria quatro décadas, criando uma imagem de amizade que existia na cabeça do grande público. Ainda assim, a química dos dois era inegável, sete vezes em cena em “Estranha Fascinação” (I Walk Alone) 1948, “Sem Lei Sem Alma” (Gunfight at OK Corral) 1957, ”O Discípulo do Diabo” (The Devil’s Disciple) 1959, “A Lista de Adrian Messenger” ( The List of Adrian Messenger) 1963, “Sete Dias de Maio” (Seven Days in May) 1964, “Vitoria em Entebbe” (Victory at Entebbe) 1976 e “Os Últimos Durões” (The Tough Guys) 1986. Dentre estes “Sem Lei & Sem Alma” é certamente um dos mais notáveis, versão romanceada de famoso tiroteio ocorrido no Arizona em 1881, já levado às telas em 1946. Douglas faz o pistoleiro Doc Holliday que vem a auxiliar o xerife Wyatt Earp interpretado por Burt Lancaster. Metódico e detalhista na composição de seus personagens, Kirk teria planejado quantas tossidas e de que intensidade essas seriam em cada cena de forma que quando editado o filme não tivesse erro de continuidade.
A credibilidade impressa em cena por Kirk era tamanha que seus papeis pareciam ser feito sob medida não importando que filme fosse. No auge dos épicos, o ator fez o guerreiro grego descrito por Homero na Ilíada em “Ulisses” em 1954 - ano em que se casou pela segunda vez, com Anne Buydens e com quem teria mais dois filhos. Interpretou o príncipe Einar de “Vikings – Os Conquistadores” (The Vikings) de 1958 contracenando com Tony Curtis, e o escravo rebelde “Spartacus” de 1960, do qual também foi produtor. Este último sagrou-se na história como um dos melhores filmes do gênero, desafiando o status-quo ao contratar o perseguido Dalton Trumbo como roteirista, conforme mencionado, e o talentoso diretor Stanley Kubrick, com quem Kirk já havia trabalhado em “Gloria Feita de Sangue” (Paths of Glory) de 1957, até hoje um dos melhores filmes de guerra, com um discurso anti-belicista em plena era da guerra fria. Durante as décadas de 70 e 80 os bons papeis foram reduzindo e Kirk fez duas tentativas como diretor: “As Aventuras de um Velhaco” (Scalawag) de 1973 e “Ambição Acima da Lei” (Posse) de 1975, Neste escreveu um papel especialmente para o ator James Stacey que havia perdido seu braço esquerdo e sua perna esquerda em um atropelamento, dando-lhe a primeira oportunidade para atuar após o acidente . Em entrevista recente com o crítico Mario Abbade (publicado em O Globo) reconheceria que achou melhor não continuar, se despindo de qualquer vaidade em admitir.
Kirk nunca escondeu a frustração de não ter estrelado a adaptação cinematográfica de “Um Estranho no Ninho” (One Flew Over the Cuckoo’s Nest), no papel que fizera nos palcos e que no cinema seria vivido por Jack Nicholson. Curiosamente, o filme seria produzido pelo seu filho Michael Douglas e foi premiado com 5 Oscars. Seguindo sua carreira, Kirk Douglas nunca parou de apoiar causas filantrópicas como uma campanha contra o abuso sofrido por idosos que o levou a ser citado pelo Congresso Nacional e resultou no filme de TV “Amos” de 1985, contracenando com Elizabeth Montgomery (da série “A Feitiçeira”). O sucesso de Michael Douglas, seu filho mais velho, no cinema estabeleceu uma dinastia no cinema. As duas gerações se encontrariam em “Acontece nas melhores Famílias” (It Runs in the Family) de 2003.
Ator e produtor já consagrado, trabalhou sob a batuta de Brian DePalma em “A Furia” (The Fury) 1978 e Stanley Donen em “Saturno 3” (Saturn 3) 1980 experimentando o cinema fantástico já que o primeiro era um thriller tratando de força telecinética e o outro uma ficção cientifica convencional. Fez trabalhos na Tv e até emprestou sua voz para um dos episódios de “Os Simpsons” em 1996. Sua aposentadoria só ocorreu devido a um derrame que lhe prejudicou a fala. Entre os diversos prêmios e honrarias recebeu a “Presidential Medal of Freedom”, a mais alta condecoração civil do Presidente Jimmy Carter, além de um prêmio “Life Achievement Award”pelo AFI em 1998. Lamentável que não tenha vencido um Oscar competitivo nas três vezes que concorrera, mas recebeu um Oscar honorário pelo conjunto da obra em 1996. Mario Abbade, jornalista e crítico de cinema brasileiro lançou o livro “O Ùltimo Durão – Centenário de Kirk Douglas” há três anos quando organizou uma mostra comemorativa da carreira dessa lenda do cinema.
Sua tenacidade o levou a superar os revezes como o derrame, a morte de seu filho mais novo Eric em 2004 por overdose e nem o peso da idade lhe tiram aquele olhar altivo, honrado ou diminuem o charme da covinha em seu queixo, marca registrada de uma carreira prolífica e que o tornou um homem de estirpe única. Com Kirk, foram Spartacus, Doc Holliday, Chuck Tatum, Ned Land, Ulisses, Van Gogh, entre outros, não morreram ... foram ao panteão dos grandes do cinema. A você Kirk .... obrigado !!