A Esterilidade das Relacoes Humanas
O Sal das Lagrimas repoe na pra?a um modelo de cinema espiritual de que o espectador j? se tinha esquecido
No começo de O sal das lágrimas (Le sel des larmes; 2020), a câmara do francês Philippe Garrel, em preto-e-branco e em espaços silenciosos, acompanha os movimentos de duas personagens no desenho urbano, desconhecidos do espectador, enigmáticos em seus gestos simples. É um rapaz e uma jovem. Ele tem hábitos provincianos na grande cidade. Ela revela em seu físico sua origem estrangeira e migratória no grande centro europeu. Ele se aproxima dela para saber como chegar a certo endereço. Parece desajeitado. Diz que não é dali: embora já tenha estado na cidade em outro momento, veio fazer um exame de concurso. Depois de receber a informação, ele segue atrás dela: faz-lhe delicadamente a corte; como nos romances antigos, que talvez sejam os modelos de cineastas franceses como Garrel. As personagens acabam aproximando-se sentimentalmente. Ela quer passar a noite com ele: mas ao estarem juntos, ele descobre que ela não quer sexo, só quer abraçá-lo, esta a necessidade dela, um abraço. Ele tenta o sexo; ela o rejeita. Ele volta à província, topa uma antiga namorada com quem faz sexo à vontade. Luc, a personagem masculina, hesita entre suas duas mulheres, a tímida e no entanto apaixonada Djemila deixada em Paris e a desenvolta e solta Geneviève, provinciana que ele vem a engravidar antes de retornar a Paris porque passou no exame. Desenhando com agudeza as características íntimas de Luc, Garrel expõe na narrativa de extrema densidade de O sal das lágrimas um olhar duro para a esterilidade das relações humanas nos dias de hoje.
Luc topa numa terceira mulher, a libertária Betsy, uma alma mais parecida com seu espírito errante, incapaz de fixar-se na estática da monogamia. Betsy leva para o apartamento deles um amigo que passa a ouvir o ronronar sexual do casal. O que vem depois são liberdades eróticas que permitem a coexistência entre Luc, Betsy e Paco, o amigo, no mesmo ambiente sem se incomodarem muito com a promiscuidade a três, embora em certos instantes haja alguma reação íntima de Luc. O pai de Luc não entende o comportamento dos jovens, ou talvez o entenda mas não o assimila. É o falecimento deste pai, numa mesa de cirurgia, que deflagra o rompimento dum vaso emocional que parecia vedado às formas estéreis do comportamento de Luc desde o início do filme. Um pai, e não as mulheres, lhe quebram o denso gelo d’alma.
O sal das lágrimas repõe na praça um modelo de cinema espiritual de que o espectador já se tinha esquecido. Aquele mesmo que artistas como o francês Éric Rohmer e o suíço Claude Goretta traziam em seus filmes nos anos 70 e 80. Como discutir as relações entre as pessoas fora dos lugares-comuns padronizados da indústria do cinema.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br