Em Torno de Adèle
Azul É a Cor Mais Quente, dirigido pelo francês Abdellatif Kechiche, é talvez o mais intenso filme da temporada
As polêmicas ajudam e perturbam a apreciação de um filme. De uma certa maneira, depois de um ponto, começam a fazer parte da própria existência, crítica ou artística, de um filme. Azul é a cor mais quente (La vie d’Adèle; 2013), dirigido pelo francês, tunisino de nascimento, Abdellatif Kechiche, é talvez o mais intenso filme da temporada que se poderá ver em Porto Alegre. Sua vida lateral começa pelas recepções de escândalo que suas muito explicitadas cenas carnais entre as duas atrizes centrais tiveram desde sua exibição em Cannes. Prolonga-se pelos atritos públicos entre o cineasta e as intérpretes diante das exibições dos filmes às plateias. As longas durações dos encontros físicos de duas mulheres, por mais de uma vez ao longo da narrativa, têm causado desconforto entre os espectadores, desconforto que promana muito mais da intensidade que do tempo do plano; ninguém espia impunemente a intimidade alheia, o prazer culpável sobrevém. Diante disto, Léa Seydoux e Adèle Exarchopoulos recriminaram em entrevistas a crueldade da direção de Kechiche nas cenas de sexo, o comportamento do diretor no set; a autora da “graphic novel” em que se baseou o roteiro, “Le bleu est une couleur chade”, Julie Maroch, apimentou a questão, desgostando-se da frieza e da crueza que ela teria visto na versão de Kechiche. O diretor do filme, por sua vez, disse sentir-se humilhado com as afirmações de suas atrizes. É um jogo estético? Por que estas atrizes, que agora se queixam, aceitaram fazer o que fizeram? Ou teriam elas, após as reações das pessoas, retroagido? Serve a uma jogada comercial? A verdade é que isto acaba embutido na forma de ser do filme Azul é a cor mais quente, que põe sua protagonista, Adèle, uma jovem estudante que gosta de dar aulas para crianças, no turbilhão dum mundo caracteristicamente contemporâneo que na verdade lhe gira em torno.
Um exemplo de contemporaneidade: em certos planos intersticiais (permeando os amores das duas personagens e as aulinhas com pequenos) Adèle é vista em passeatas de protesto; por empregos, por exemplo (“postes” é a palavra frase francesa que surge nas manifestações populares do filme). Recentemente na França prostitutas saíram às ruas, diante dum projeto de lei que lhes espantava os clientes fixando uma penalização para eles, com cartazes assim: “Putes sans clients cherchent poste au gouvernement”. Se a lei dos legisladores lhes tirava os clientes, as garotas queriam empregos no governo. Adèle poderia ser uma destas putas em cena política (ela se converte ao lesbianismo, por prazer e paixão, e sua parceira, diante duma traição, lhe chama puta —puta ou lésbica, eis a questão, se se trata de sinônimos...).
Haverá quem possa achar que os excessos sexuais da narrativa de Kechiche lhe perturbam outros assuntos, a questão contemporânea do jovem (de maneira diferente, mas também muito próxima, o italiano Bernardo Bertolucci versa sobre o tema em Eu e você, 2012), a crise europeia (não tem como fugir), as relações humanas das garotas (prazeres e sofrimentos em doses elevadas). É como aquele espectador que acha que se poderia tirar as extensas e intensas sequências duma perseguição de automóveis dum filme sobre os dilemas da sociedade americana. Esquece-se que certos signos (o sexo, o automóvel) estão incrustados na reflexão. O sexo como prazer de intensidade é necessário na forma de se expor de Azul é a cor mais quente. O observador não deveria culpar-se por ser um “voyeur” que mergulha no prazer das duas mulheres, extraindo dali seu orgasmo.
De uma certa maneira, depois de um certo ponto, o amor entre a professorinha um pouco arredia no começo (Adèle Exarchopoulos empresta a ela suas características ancestrais helênicas) e a pintora-intelectual-lésbica-sartreana (Léa Seydoux lhe dá uma performance autenticamente francesa) perdura para além de seu espaço-tempo de ação cinematográfico. Como todo amor, desgasta-se com a passagem dos dias, mas nunca esgota o filme, permanecendo intenso do primeiro ao último fotograma.
Antes deste filme, o diretor fizera um outro que atacava vorazmente a questão da genitália feminina, Vênus negra (2010). Quase ninguém o viu. O barulho exterior a Azul é a cor mais quente certamente atrai um público maior. Isto não se pode desligar de seu processo estético.
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br