O Olhar no Cinema: Um Tabu Que Se Perde no Tempo
Tabu (2012), filme realizado pelo lusitano Miguel Gomes, é todo ele tecido em torno da criatividade verbal


O cinema português tem destas coisas que desorientam. De uma maneira diferente daquelas dos franceses, o cinema em português utiliza agudamente a palavra, é muitas vezes um cinema da palavra. A palavra francesa: a poesia (o canto) na filosofia. A palavra portuguesa: a filosofia na sinonímia e na sintaxe. Vamos à prática: Tabu (2012), filme realizado pelo lusitano Miguel Gomes, é todo ele tecido em torno da criatividade verbal, sem que isto implique em desleixos visuais, antes pelo contrário, a narrativa de imagens, em rigoroso preto-e-branco, é aprofundada em todos os seus enquadramentos, a aliança entre o verbo e a imagem é um dado exemplar da realização de Gomes. Não se dá aqui como nos franceses Eric Rohmer e Alain Resnais: é quase como se o romancista luso Eça de Queiroz despontasse da tumba para dirigir filmes ou um pouco como se o diretor de cinema Gomes se espelhasse nos escritos contemporâneos do ficcionista António Lobo Antunes.
A voz-over do próprio diretor, Gomes, atravessa a sinuosidade temporal das imagens. O filme está dividido em partes, começando por um prólogo em que, no coração da África, se mostra o estranho suicídio dum aventureiro que se joga num rio de crocodilos. O filme começa atirando já pelo aspecto lendário: como se o que está acontecendo (o que se vê na tela) fosse um símbolo e não uma realidade primeira. Depois, Gomes circula pela vida de três mulheres —Aurora, Santa e Pilar—, misturando muitas vezes as personalidades das três, especialmente as de Aurora e Pilar, que vagam como em ambientes atemporais entre a velhice e a juventude, inserindo por aí também um homem, Gian-Luca, que corresponderia ao narrador-over cuja voz é a do próprio Gomes. Na utilização dos nomes (palavras) a homenagem de Gomes ao cinema natural-poético-expressionista do alemão F.W. Murnau se evidencia: Aurora é um filme de Murnau de 1927 e Tabu, feito em 1931, foi o filme que fechou a filmografia do mestre germânico.
Mas este mergulho de Gomes nas fontes do passado nunca é subserviente; é uma nova criação e também uma recriação. Ao falar de temas especificamente portugueses (as guerras coloniais na África, como nos textos do escritor Lobo Antunes) iluminados por suas referências culturais cinematográficas, Gomes acaba edificando uma contemplação sobre o tempo e o gesto, algo enraizadamente pós-bressoniano.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)


Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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