Um Acerto de Contas Numa Obra-Prima
O Estado das Coisas (Der Stand der Dinge; 1982) em certos momentos, se trata de uma divagacao quase a esmo em torno de obsessoes artisticas muitas vezes obscura
É um dos picos do cinema de Wim Wenders. Foi concebido como uma resposta germânica de Wenders à sua tumultuada experiência hollywoodiana, sob o produtor Francis Ford Coppola, em Hammett (1982). O estado das coisas (Der Stand der Dinge; 1982) é, em certos momentos, uma divagação quase a esmo em torno de obsessões artísticas muitas vezes obscura; tem-se a impressão da improvisação amadorística de Wenders ao longo dos anos 70 (O medo do goleiro diante do pênalti, 1972; Alice nas cidades, 1974), um processo de filmagem quase sem roteiro, buscando o elemento íntimo do ator e do cenário. A proposta formal debruça-se sobre o descosimento de narrar. O que impede a dispersão estética e faz com que O estado das coisas adquira, no andar da montagem, na colagem de um plano no outro, é a genialidade do espírito cinematográfico de Wenders, este senso duma peculiar construção fílmica que o alçou a um dos nomes básicos do cinema nos anos 70 e 80.
As primeiras imagens mostram difusos vultos e movimentos num filme de ficção científica que um diretor alemão está rodando para produtores americanos. O estado das coisas trata, em boa parte de sua narrativa, da filmagem de um filme dentro do filme, como tantas vezes em que o cinema já se meteu, sem o mesmo brilho, sem a mesma invenção, sem a mesma profundidade. O que está em cena é uma experiência europeia em Hollywood; como Wenders em Hammett, uma narrativa de gênero para adaptar-se ao artista obsessivo e pensador. Depois, a história passa a vagar. A situação inicial: faltou dinheiro para seguir as filmagens e o produtor vai a Los Angeles conversar com os financiadores. O produtor primeiro tarda a chegar, depois desaparece: não logram localizá-lo. O diretor, seu cinegrafista, a equipe toda se inquietam: uma inquietação paira em cada cena. As sequências finais completam a densidade de filmar perseguida pela tenacidade de Wenders. Numa cena, o produtor finalmente encontrado pelo diretor no espaço recluso duma van, é cruelmente melancólico ao cantar uma canção sobre Hollywood, logo depois de reflexionar sobre a aventura cinematográfica radical e fracassada em que estavam imersos. No fim mesmo, um tiro vindo incógnito atinge o produtor; imagens posteriores mostram o diretor do filme dentro do filme manejando uma câmara portátil como se fosse uma arma ao mesmo tempo em que parece ser alvejado por outros tiros incógnitos.
O estado das coisas é uma narrativa cinematográfica dos espaços. Estes espaços que, filmados por Wenders, captam o estado mental do artista de acordo com ele mesmo, Wenders.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br