A Magia e a Poesia em Seu Sentido Profundo
O teor formal e tematico de Petite Maman pode conduzir o espectador a outras aventuras do cinema na alma feminina de criancas
Nas primeiras imagens de Petite maman (2021) a câmara bastante íntima da francesa Céline Sciamma acompanha a pequena Nelly quando a menina caminha pela casa em direção a algumas mulheres bastante velhas, avó e talvez bisavó de quem ela se despede; não sabemos, não saberemos ao certo porque a menina diz adeus a estas ascendentes; no último compartimento da cabana em que a família, num lugar isolado, a garotinha dá com sua mãe e conversa com ela, uma conversação trivial mas também intimamente espiritual. Logo depois, numa sequência, a mãe está de partida: ainda não somos informados dos motivos da partida, se é uma separação no casamento com o pai, se é algo que a mãe tem de fazer na cidade, se (e isto é imaginação) a mãe morreu, como a avó na abertura do filme. Nelly fica com seu pai. Nos caminhos do mato em torno, Nelly encontra outra menina, Marion. Boa parte da narrativa de Sciamma (sensível e controlada pelo rigor, mágica no sentido estético, poética em suas formas mais depuradas) se concentra em descrever, ou põe em cena as imagens desta amizade feminina infantil. As relações de Nelly com os adultos (pai, mãe, avó) é observada em sua superfície e distanciamento; a autenticidade do relato do espírito que é o filme de Sciamma nasce basicamente dos achados perfeitos que são a encenação desta pequena amizade entre duas meninas.
Petite maman nunca entrega totalmente o jogo. É feito de entrelinhas e de coisas não ditas: antes, sugeridas, como, essencialmente, a partida da mãe por motivo ignorado e para lugar incógnito (a cidade, a morte: desaparece dos olhos da menina, que agora parece viver muito para sua amiga, Marion).
Como em Retrato de uma mulher em chamas (2019), a alma feminina é o objeto assumido de Sciamma. Agora ela vai a um ponto de vista mais difícil, quase inacessível: o modo de ver das crianças, mais ainda uma criança-mulher. A cineasta filma com rigor e objetividade; mas sabe encenar a realidade infantil com a desenvoltura de fantasia que naturalmente se mistura ao real cotidiano, alterando-o. A mãe de Nelly desapareceu, a figura feminina ausente causa na pequena um aleijão da alma; então a substituição: a amiguinha substitui a mãe, no psicodrama que as garotinhas dramatizam como atrizes na pele das atrizes que são no filme de Sciamma Nelly assume Marion como a “petite maman”, a mamãe do futuro; a mãe adulta que surge na imagem final, após Marion ter partido para uma complicada cirurgia, numa despedida tocante e aguda, está no corpo da atriz que no início do filme era mesmo a mãe de Nelly, mas parece que estamos no futuro, e Nelly chama sua mãe de Marion.
O teor formal e temático de Petite maman pode conduzir o espectador a outras aventuras do cinema na alma feminina de crianças. Em Cria cuervos (1976), do espanhol Carlos Saura, Ana Torrent, uma atriz de oito anos, é uma imagem que se eterniza na retina do observador. Vinte anos depois, em Ponette (1996) o francês Jacques Doillon trouxe a pequena Victoire Trivisol para encenar um luto imaginário diante das câmaras. Céline Sciamma parece tão à vontade com suas miúdas intérpretes Joséphine Sanz e Gabrille Sanz (na vida fora do cinema as atrizes são gêmeas) que a fantasia pretendida é simetricamente uma notável realidade cinematográfica.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br