O Documentario da Alma em Antonioni

O eclipse (1961) coroa a trilogia das formas de comunicacao da burguesia intelectual

15/08/2020 03:38 Por Eron Duarte Fagundes
O Documentario da Alma em Antonioni

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O eclipse (L’eclisse; 1961) coroa a trilogia das formas de comunicação da burguesia intelectual europeia num momento dado trazida ao cinema pelo cineasta italiano Michelangelo Antonioni. Completando aquilo que ele começara a dizer em A aventura (1959) e seguira divagando em A noite (1960), o realizador altera a percepção cinematográfica da crise do homem do século XX diante dos impasses mal definidos dos relacionamentos entre os indivíduos que então habitavam as sociedades. A questão homem-e-mulher em Antonioni adquiriu nos três filmes uma estatura diferente, um modelo que, apesar de ele antes já ter aprofundado seus temas em obras-primas como As amigas (1955) e O grito (1957), era desconhecido e secreto.

No início de O eclipse planos e diálogos ríspidos e exasperantes revelam a insatisfação da protagonista ao contato com os rumos de sua relação com o amante; as preocupações, avanços e recuos das cenas iniciais entre Vitória e Ricardo não são tematicamente novas, novo é o olhar enviesado e marcadamente geométrico de Antonioni para o gesto humano circundado por um cenário característico. Antonioni é formalista; mas seu formalismo nunca é vazio: a profundidade está colada na forma. Em seus filmes da trilogia do vazio Antonioni depura o cinema que outro italiano, Roberto Rossellini, já apresentava a plateias perplexas e despreparadas no começo da década de 50 em Europa 51 (1952) e Viagem à Itália (1953).

Quem se dispuser a exercitar o olhar por sequências ora de um, ora de outro filme da trilogia, parece que está assistindo a peças de uma mesma narrativa. A coerência destes filmes é seu coração estético. Em O eclipse a câmara persegue o caminhar e o rosto de Monica Vitti, mulher do cineasta; se o espectador olhar em seguida um plano de Jeanne Moreau caminhando em A noite, terá a impressão de que são partes da mesma caminhada. Em O eclipse um ventilador gira mexendo as páginas de um livro; os planos de natureza do começo de A aventura poderiam imiscuir-se dialeticamente nas observações densamente urbanas de O eclipse.

É impressionante a plasticidade lenta e elaborada de O eclipse, talvez o mais abstrato dos filmes da trilogia; quando o observador se dá conta, já se foi uma hora de filme sem nada, o tédio mesmo em cena, a balbúrdia nas cenas da Bolsa de Valores, as estéreis indecisões sentimentais de Vitória, a figura plana e árida de Piero (um jovem e escultural Alain Delon). A magia de Antonioni vem do conceito de expor impiedosamente, numa forma tão revolucionária quanto adequada, a falta de perspectivas dos burgueses europeus entregues a suas perambulações existenciais.

O senso do cenário é um dado de que Antonioni nunca abdica; o cenário em Antonioni é uma personagem da linguagem. O símbolo está ali e parece bastar-se por si mesmo. É pelo raciocínio do cenário que se explica a conclusão narrativa de O eclipse, talvez a mais engenhosa conclusão cinematográfica de uma obra de Antonioni, sempre criativo nos finais de seus filmes. Senão vejamos. Depois do aparente ajuste de Piero e Vitória, Antonioni dispõe planos diversos que buscam significar a estética urbana da década de 60. Um plano fixo de um objeto, outro plano fixo e outro objeto, e assim por diante, algumas breves panorâmicas, um pequeno e curvo plano aéreo, tudo articulado para gerar o último plano do filme, a intensa luminosidade do eclipse que cega o assistente e liquida com a visibilidade do filme. De certa maneira, a insistência de planos da sequência final vai pouco a pouco abstraindo o conteúdo dos planos para se converter numa forma pura, que é a raiz da novidade reflexiva de Antonioni.

Há um paradoxo em O eclipse, cujo véu se torna obscuro de desvendar (as coisas nunca são simples com Antonioni): quanto mais se enraíza num cinema literário e existencial, mais a forma de Antonioni documenta o mundo. É mais ou menos este paradoxo ontológico que torna o fim de O eclipse tão inquietante: vemos as imagens do olhar interior de Antonioni ao mesmo tempo em que estão ali significativas documentações da civilização moderna.

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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