A Alma do Romance em Dostoievski

Os irmaos Karamazov da seu pontape inicial propondo-se a biografia duma familia

15/03/2022 18:16 Por Eron Duarte Fagundes
A Alma do Romance em Dostoievski

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Li pela primeira vez Os irmãos Karamazov (Brátia Karamazóvi; 1881), o tortuoso romance escrito pelo russo Fiódor M. Dostoiévski, em meus precários quatorze anos de idade, pouco depois de ter lido Noites brancas (1848) sob indicação duma colega de aula. Mergulhado então nos românticos brasileiros (José de Alencar à frente) e em alguns quinhentistas portugueses (Camões, Fernão Mendes Pinto, João de Barros), todos devidamente catados nas bibliotecas da cidade de interior em que eu vivia, deparar com aquelas agonias de personagens de Dostoiévski foi uma experiência que me fugia explicar então. Abalado, eu ainda voltaria àquelas páginas várias vezes, buscando entender aquele mundo moralmente infernal que me seduzira ainda que permanecesse distante de minhas ideias e emoções; agora, já ia para uns trinta anos que não relia este romance que é o mais devastador da história, embora aqui e ali tenha frequentado suas páginas para tentar compreender algumas das loucuras dos homens e iluminar tantas leituras depois distantes no tempo.

Anos mais tarde, já longe do interior em que fui criado, dei com notas do inglês E.M. Forster em seu ensaio Aspectos do romance (1927, tratando duma visão bem particular do universo de Dostoiévski. O que se lê na VII PARTE, “A profecia”, do livro de Forster é iluminador para a experiência que tive com o escritor russo desde o primeiro contato. Forster lê dois trechos literários, um da romancista George Eliot, outro de Dostoiévski nos Karamazov. Observa o crítico inglês: “George Eliot fala sobre Deus, mas nunca altera seu foco: Deus e mesas e cadeiras estão todos no mesmo plano, em consequência não temos, sequer por um momento, a sensação de que todo o universo precisa de piedade e amor —eles são necessários só na cela de Hetty. As personagens e situações em Dostoiévski sempre representam algo mais do que elas próprias: o infinito as acompanha: embora permaneçam indivíduos, expandem-se para abraçá-lo  e invocam-no para abraçá-las: poder-se-ia aplicar-lhes o dito de Santa Catarina de Siena de que Deus está na alma e a alma está em Deus, como o mar está no peixe e o peixe está no mar.” Ao ler isto, comecei a ter a percepção de meu delírio adolescente diante da leitura de Os irmãos Karamazov. Não se trata somente de um romance da alma do homem: a alma do romance, em sua essência estética, está em Os irmãos Karamazov. Aparentemente, para o leitor habitual, surge a pergunta do romance policial convencional: quem matou o velho Fiódor Karamazov? Especificamente, qual dos filhos o matou: Mítia (Dimitri), que no fim do livro é julgado e condenado; Ivan, que também sente asco por seu pai; poderia surpreendentemente ser o místico e religioso Aliócha; ou então, este perverso quarto elemento, o filho bastardo (até no que esta expressão tem hoje de fora de moda), convertido em criado para disfarçar a desonra familiar, Smierdiákov, esta criatura sinuosa e meio sinistra da narrativa? Nada fica dito às claras nos liames metafísicos da história: materialmente, Mítia é afastado das possibilidades do crime (sua condenação teria sido injusta), embora desejasse a morte do pai; Ivan e Smierdiákov têm seus conluios, parte da conclusão da consciência narrativa dá uma informação velada, o criado-filho matou Fiódor por sugestão indistinta de Ivan.

O ponto alto da cena dostoievskiana, e talvez de toda a literatura que conheço, é o encontro, entre alegórico e realista, entre Ivan e o Diabo. “Tinha consciência de seu delírio e fixava obstinadamente certo objeto, em cima do divã, em frente dele. Ali apareceu de repente um indivíduo, que entrou Deus sabe como, porque não estava ali quando chegou Ivan Fiódorovitch, após sua visita a Smierdiákov.” Não há páginas mais impressionantes em toda a literatura, talvez. “Se Deus não existe, tudo é permitido” é a premissa duma teoria teológica ou epistemológica lá atrás duma personagem secundária do romance. As ideias em Dostoievski são sensações: mergulham-nos em paradoxos, em inquietações. Dostoiévski põe em marcha a dinâmica do irracional no humano. Daí ele nos assombra com seu alto dom de ficcionista. Um adolescente em busca do mundo ou o homem à porta da velhice em seus anos derradeiros. O romancista capta não os nossos significados mas o grande barulho incógnito de nossas vidas.

Os irmãos Karamazov dá seu pontapé inicial propondo-se a biografia duma família. Como se fosse uma crônica russa. Porém: Dostoiévski não é Tchekhov. Dostoiévski tem os gestos largos de romancista. Fiódor, a trágica personagem morta por um dos filhos (o mais espúrio, o tortuoso criado), começa o livro como um bobo da aldeia: amante de mulheres, conta a anedota dum comissário de polícia com quem privou e resolveu fazer um suposto elogio à mulher do comissário, usando sobre ela o termo “coceguenta”, “no sentido de ser muito sensível em questão de honra”, então à pergunta do comissário, “o senhor lhe fez cócegas?”, Fiódor responde de pronto, “sim, fiz-lhe cócegas”, e aí “então quem me fez cócegas foi ele”, Fiódor justifica-se, “é preciso ser agradável, não é verdade?” Fiódor só não parece agradável para seus filhos; Fiódor os constrange em muitas atitudes.

Os irmãos Karamazov é um tenso ensaio sobre o desejo de matar o pai (ou tudo o que nos antecede) que percorre a espinha de todos, queiramos ou não. Não é por acaso que o texto nos amedronta, da adolescência aos gestos finais de nossas vidas. Freud ficou abismado com Dostoiévski. Todos ficamos. Há uma personagem do diretor espanhol Carlos Saura no filme Mamãe faz cem anos (1979) que tem seus delírios após impressionar-se com a leitura de Os irmãos Karamazov. No filme de Saura, trama-se a morte da matriarca: aí é um pouco questão de dinheiro. Dostoiévski na verdade leva adiante este desejo de morte: aos extremos metafísicos. Estamos, pois, longe da aura dum romance policial. O “quem matou Fiódor” converte-se num assassinato coletivo onde o narrador desnuda o navegar de cada consciência.

Depois do desgraçado Mítia, do sombrio Ivan (que dialoga com o Diabo mimetizando-se), do disforme Smierdiákov, é o místico e sinuosamente doce Aliócha quem conclui as ações finais do romance, rodeado de crianças. A frase de uma delas fecha este abismo que é Os irmãos Karamazov. “—E sempre assim, a vida inteira, de mãos dadas! Viva Karamázov! —repetiu Kólia com entusiasmo, e sua aclamação foi repetida por todos os meninos.” Voltemos a Forster e suas notas: “como uma sala de visitas depois de um terremoto ou uma festa de crianças.”

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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