O Classico Inquieto de Geraldo Sarno
Sertania em muitos aspectos se vai afastando de uma certa objetividade narrativa que havia em seus trabalhos mais antigos
Comparado com outros cineastas nordestinos de hoje (os pernambucanos Marcelo Gomes e Kleber Mendonça Filho e o cearense Karim Aïnouz), o cinema do baiano Geraldo Sarno traz as sombras de um humanismo cinematográfico bastante clássico em suas linhas essenciais e definidoras. Sertânia (2019), seu novo filme e um dos pontos altos do atual cinema brasileiro, não contradiz esta constatação: o rigoroso humanista formado em alguns conceitos vivenciados pela intelectualidade brasileira ao longo do século XX está de volta. Mas é bom observar que o clássico de Sarno nunca é acadêmico: é um clássico inquieto, próximo do revolucionário mesmo; está mais aparentado daquele sentido do clássico estabelecido pelo italiano Luchino Visconti do que para americanos como John Ford —embora possa, em sua forma, e por algum momento, navegar de um para outro destes mestres, como, no passado, fez outro baiano, o diretor de cinema Glauber Rocha.
Sertânia (assim como acontecera com O último romance de Balzac, 2010, o filme anterior de Sarno) em muitos aspectos se vai afastando de uma certa objetividade narrativa que havia em seus trabalhos mais antigos, como Coronel Delmiro Gouveia (1978). O modelo mais aferrado a uma investigação sociológica em imagens, identificado pelo ensaísta Jean-Claude Bernardet como uma das chaves do cinema de então de Sarno, se confunde e permuta bastante numa narrativa como esta de Sertânia. O novo filme de Sarno desmonta a linearidade em vários dos itens duma construção cinematográfica. A violência da vida nordestina no sertão (tanto na fome das pessoas quanto no coeficiente de brutalidade dos jagunços) é retratada numa complexidade de relações (visuais, históricas, sociológicas) entre a realidade dos indivíduos daqueles remotos e um certo imaginário nordestino histórico; a canção cinematográfica que é Sertânia expõe os ossos destes dois mundos, o da vida cotidiana no Nordeste e a vida que se passa na cabeça dos brasileiros (dos nordestinos, inclusos) como o real imaginário da região. Uma personagem grita na paisagem dura, com a câmara se embalançando em seus delírios: “O povo não tem culpa de passar fome.” De certa maneira, em vários momentos, Sarno repõe em cena aquela voz tonitruante duma personagem de Terra em transe (1967), de Glauber Rocha, cujo objetivo, olhando o povo, era pôr nossas histéricas tradições em ordem. Um aspecto essencial do estilo de filmar de Sertânia para descaracterizar o linear narrativo é o uso da fotografia de Miguel Vassy; há aí uma ponte entre o visual de Sertânia e a fotografia crua e esbatida de Luiz Carlos Barreto para o filme Vidas secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos. Mexendo com nossa maneira de recepcionar a luz de um filme, Geraldo Sarno monta o absoluto instante criativo de seu classicismo de filmar.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br